Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Norberto Branco era cego de nascença. Era cego há trinta e cinco anos, filho de pais também invisuais e já falecidos.
Talvez por isso, desde muito novo se habituou a sobreviver num mundo que não foi criado para ele e pessoas como ele.
Frequentou escolas especiais e, com a ajuda da ACAPO – Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal conseguiu um emprego como telefonista numa empresa particular. Não foi fácil mas a sua determinação, capacidade e competência tinham dado uma preciosa ajuda.
Era um pouco baixo e anafado e já tinha uma considerável calva.
Vivia num quarto alugado a um casal de reformados que assim tinham um pouco da sua companhia e da de uma jovem estudante de Biologia que viera de uma vila beirã. Mas tinham também um complemento para a reforma.
Norberto todas as manhã saía cedo da casa que ostentava uma traça arquitectónica dos anos cinquenta como quasi todas as outras que ficavam nessa sossegada rua. Andava a pé cerca de quinhentos metros, sempre com a ajuda da vara de liga de alumínio, que era fundamental, até uma artéria muito mais movimentada onde apanhava um autocarro que parava praticamente à porta do emprego. Almoçava sempre num café modesto que servia refeições e se situava quasi ao lado do prédio onde se localizava a empresa.
Às cinco e meia iniciava o mesmo percurso mas em sentido contrário.
Tinha uma namorada, também invisual, que trabalhava numa cantina mas só costumava encontrar-se com ela aos fins-de-semana.
Numa tarde amena de Maio, quando regressava e já na rua onde morava, ouviu uns passos atrás de si. Nada de anormal. A via não era movimentada mas também não era deserta. Quando parou para contornar um obstáculo que não era habitual estar nesse ponto, os passos deixaram de se ouvir. Retomou a marcha e novamente quem estava a caminhar muito perto dele reatou o movimento.
Parou outra vez para atravessar a passadeira para peões que sempre usava e o som que lhe despertara a atenção deixou de se fazer ouvir.
Atravessou e continuou a marcha, apercebendo-se de que, do outro lado da rua, os passos continuaram.
Parou à porta, abriu-a e entrou. Escutou antes de a fechar e sentiu o retomar da marcha do transeunte misterioso.
Contudo, após cinco minutos em casa esqueceu o assunto.
No dia seguinte e novamente ao chegar à rua onde residia, sentiu os mesmos passos. Estacou de repente, propositadamente, e o enigmático homem, pois conseguiu aperceber-se de que se tratava, com grande probabilidade, de um homem, parou. Retomou a caminhada e lá ressurgiram os passos. Começou a ficar intrigado e receoso. Parou junto da passadeira e tudo se passou como no dia anterior.
E foi assim mais duas vezes.
Combinou então com a jovem estudante, a Sara, que no dia seguinte ela estaria a espreitar pela janela à hora dele chegar para ver quem seria a estranha personagem.
E no outro dia:
- Olá, Norberto!
Ele exigira que a moça deixasse de o tratar por senhor.
- Olá, Sara! Boa tarde! Então?
- Pelo que vi, trata-se de um jovem, talvez com uns dezoito anos e com ar de quem não tem muito dinheiro – disse a rapariga.
- Mas tem um aspecto perigoso? De ladrão? Drogado? Tresloucado? – perguntou o invisual.
- Não me pude aperceber desses detalhes, mas não me pareceu fora do normal. Mas notei bem que andava a segui-lo.
- Intrigante! – exclamou o Norberto passando a mão pelo pouco cabelo – Amanhã a Sara está cá a esta hora?
- Amanhã não! Mas depois de amanhã estou.
- Então não se importa de ficar outra vez em observação que eu vou meter conversa com ele? – perguntou o homem.
- Se quiser até vou para junto da passadeira no passeio do outro lado.
E continuou a jovem:
- Assim, não só o poderei ajudar se houver alguma complicação como observarei melhor o rapaz.
- Boa ideia! Faz-me esse favor?
- Claro que sim! Também estou a ficar muito curiosa – confessou a rapariga.
Dois dias depois a cena parecia uma reposição do mesmo filme até que, ao parar na passadeira, o Norberto virou-se para o local onde supostamente estaria o jovem e disse:
- Porque é que me andas a seguir? Conheces-me? Fiz-te mal alguma vez? Que pretendes de mim?
O rapaz ficou estático e nada disse. Até que o cego falou de novo:
- Então? Comeram-te a língua?
- Peço desculpa! Mas o senhor é o meu pai! – disparou o jovem, quasi fulminando o Norberto.
- Eu? Deves estar enganado. Mas mesmo que o fosse, isso não justificava essa perseguição tão estranha. Se querias falar comigo, metias conversa, não achas? – interrogou o mais velho.
- Sim! Peço desculpa!
- Mas agora diz-me: que idade tens?
- Dezoito anos – respondeu o rapaz.
- Isso quer dizer que, se fosses meu filho, eu te teria gerado com dezasseis anos. Impossível, porque só iniciei a minha vida sexual com dezoito anos. Mas quem é que te meteu isso na cabeça? – continuou o Norberto a tentar desvendar o enigma.
A Sara continuava ali, junto deles, a ouvir atentamente a conversa.
- A minha mãe disse-me que o meu pai era cego e se chamava Norberto – confidenciou o jovem deixando o homem ainda mais confuso.
- E quem é a tua mãe? – perguntou.
- É a Clara!
- Ahh... – exclamou o invisual – de facto, conheci uma rapariga chamada Clara nessa altura, quando tinha dezasseis ou dezassete anos. Cega também! Tivemos um namorico mas nunca tivemos relações sexuais, por isso não sei que ideia é essa de ela dizer que sou o teu pai – disse o homem já um pouco irritado.
- Eu agora não lhe posso explicar, mas se falar com ela fica a saber – aconselhou o jovem.
- Nunca mais a vi desde essa época. Onde vive ela? – perguntou o Norberto.
- Aqui perto! Quando quer falar com ela? Amanhã? – sugeriu o moço.
- Está bem! Amanhã podes esperar por mim à saída do autocarro?
- É melhor ser eu a entrar porque é nessa carreira que se vai para minha casa – esclareceu o jovem.
- Sendo assim, está atento que eu faço sinal. Espero que me vejas pois eu não te posso ver.
- Sim senhor!
- Ahh...como te chamas?
- Tiago!
- Então até amanhã, Tiago! – despediu-se o Norberto.
O cego e a Sara foram para casa e falaram sobre o assunto:
- Eu achei o moço um tanto estranho! – disse a rapariga – Estava sempre a olhar para o fundo da rua como se alguém conhecido fosse aparecer de repente.
- Tudo isto me parece bastante esquisito, mas amanhã espero tirar as coisas a limpo.
- Quer que vá consigo? – ofereceu os seus préstimos, a estudante.
- Não, muito obrigado! Não me parece que corra nenhum risco!
No fim da tarde do dia seguinte os acontecimentos ocorreram como previsto.
Não demorou muito que o Tiago dissesse:
- Saímos aqui!
E apearam-se ambos e mais alguns utentes.
- A minha casa é pertinho – informou o rapaz.
- Melhor assim!
Pouco depois:
- É esta! Vou tocar à campaínha! – e assim fez, o jovem.
Apareceu uma mulher baixa e gorda, que disse:
- Olá, Norberto! Sou a Clara! Lembraste de mim?
- Claro que sim! Mas não falamos há mais de dezoito anos – foi dizendo o homem.
- Entra para conversarmos um pouco – convidou ela.
- Para isso eu vim cá. Mas sobretudo quero clarificar as coisas.
- Tiago! Ficas aqui que eu quero falar a sós com o Sr. Norberto. Está bem, filho? – falou a mulher.
- Sim, mãe!
Uma vez sentados dentro da humilde casa, Clara começou:
- Muito pouco depois de nos termos afastado, conheci um tipo que me prometeu tudo e mais alguma coisa. Acabei por ficar grávida. Quando lhe disse, desapareceu e nunca mais soube nada dele. Tive um filho a quem dei o nome de Tiago, como já percebeste. Passei muito nestes anos. Andei quasi a pedir esmola e isso não aconteceu porque tive o apoio de um grupo de senhoras ligadas a uma obra da igreja. Durou alguns anos até que me arranjaram um empregozito e esta casita.
O Norberto ouvia atentamente e ela continuou:
- Não sei se fiz mal, mas sempre disse ao meu filho que o pai era uma pessoa má. Em contrapartida, dizia-lhe que tinha conhecido um homem muito bom, também cego como eu, que se chamava Norberto. E dizia-lhe que tu é que devias ter sido o pai dele. Talvez por castigo, no ano passado o Tiago começou a ter comportamentos estranhos e foi para o hospital dos malucos. Os médicos acabaram por dizer que ele tinha uma doença mental grave chamada...deixa ver se não me engano...esquizofrenia.
- Humm...começo a perceber...
Mas ela continuou:
- E assim começou a cismar que eras o pai dele. Recentemente soube, através da Amélia – lembras-te dela? – onde tu trabalhavas. Disse-o ao Tiago e agora acho que já compreendes porque ele te persegue e diz que és o pai.
O Norberto estava destroçado. A vida daquela mulher com trinta e tal anos devia ser um verdadeiro inferno. Não sabia bem o que dizer, mas, ao fim de algum tempo, conseguiu articular umas palavras.
- Sim, Clara! Percebo!
Fez uma pausa e continuou:
- Espero que essa ideia fixa que tem o Tiago, desapareça. Vives sozinha com ele, não é? Não tens nenhum homem que te apoie – perguntou, curioso, o cego.
- Não! Tenho de lidar com a minha deficiência e com um filho que adoro mas que, infelizmente, é doente mental, sem quaisquer apoios, para além de um ordenado miserável e desta casinha onde entra água quando chove – lamentou-se ela.
- Clara! Eu não te prometo nada, mas se conseguir melhorar a tua vida, podes ter a certeza de que o farei – falou ele, com o coração apertado.
- Obrigado, Norberto! Tu foste o melhor homem que conheci na minha vida.
E conversaram durante mais algum tempo.
Depois o Norberto voltou a casa, comeu qualquer coisa e contou toda a história aos velhotes e à Sara.
No dia seguinte, quando regressou do trabalho e se apeou do autocarro, ouviu uns passos que lhe eram familiares. Parou e disse:
- Anda para o meu lado e vamos caminhar e conversar, Tiago!
- Sim, pai! – anuiu o jovem.
E o Norberto Branco iniciou a sua tentativa de persuadir o rapaz de que não era o pai dele.
A tarefa era complicada.
Passadas algumas semanas o seu pretenso filho deixou de aparecer até que uma tarde foi surpreendido pela Clara.
- Olá, Norberto! – saudou a mulher.
- Olá, Clara! Estou admirado porque já há uns quinze dias que o Tiago não aparece.
- Nem vai aparecer mais! Suicidou-se!