Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Numa rua rasgada há cinco ou seis anos na zona periférica e ainda muito rural duma cidade do interior, apenas umas moradias novas, nem todas habitadas, contrastavam com os campos, baldios, silvedos e lotes de terreno que predominavam.
Tinham sido plantadas umas árvores que ainda não eram suficientemente crescidas para darem uma sombra capaz e muito menos nesta época invernosa em que deixavam ver somente os troncos e os galhos desfolhados.
Um carro preto de gama baixa estava estacionado junto ao passeio.
Chovia, mas podiam-se ver dois vultos lá dentro. Ambos no banco traseiro.
Da escola primária do plano centenário que ficava situada numa antiga artéria donde nascia a rua das moradias saíram muitas crianças. Umas entraram em viaturas que as esperavam, outras quedaram-se na porta, outras avançaram a pé para o seu destino. Só um rapazito da segunda classe, bem protegido contra a intempérie, andou uns cem metros e depois virou à direita pela rua nova. Bastava-lhe andar mais uns duzentos metros e estaria em casa onde o esperava a empregada Eulália.
Pouco passava das cinco e meia da tarde e a noite começava a cair.
Viu o carro preto que, ao aproximar-se, identificou como um Volkswagen Polo. Quando estava a passar por ele, subitamente abriram-se ambas as portas traseiras. Dois indivíduos vestindo longas gabardinas com capuz precipitaram-se sobre a criança, num ápice adormeceram-na com éter e meteram-na no banco de trás. Uma das estranhas personagens entrou para lá, o outro torneou o automóvel e, sentando-se ao volante arrancou devagar, fez inversão de marcha pois a rua nova ainda só tinha uma entrada, e guiou calmamente pela estrada empedrada e estreita da escola seguindo depois por outras vias com o mesmo enquadramento rural mas afastando-se sempre da zona citadina.
Percorreu poucos quilómetros por estradas em paralelo até parar numa zona descampada:
- Vou tirar os panos que estão a tapar as matrículas – disse o condutor.
Assim fez e lançou os trapos para um ribeiro que a chuva tornara mais caudaloso.
Depois abriu a porta traseira do seu lado, entrou, e os dois amarraram o jovem ainda adormecido, taparam-lhe a boca com adesivo industrial, certificaram-se de que respirava bem pelo nariz, vendaram-lhe os olhos e o condutor retirou da cabeça um pedaço de meia de senhora com o qual se mascarara. O cúmplice fez o mesmo. Guardaram-nos num bolso dos capotes.
- Agora vamos para o local – falou de novo o chefe.
Passados alguns quilómetros saíram das estradas empedradas, andaram uns quinhentos metros por uma de terra batida e lamacenta que mais parecia uma picada e, numa zona arborizada, pararam junto de um casebre. Os faróis já estavam acesos e a vítima desperta.
Saíram os três, entraram na cabana e depois de acenderem um candeeiro a petróleo deitaram a criança num colchão, bem amarrada, mas de modo que poderia alimentar-se pelas suas próprias mãos, pois só os pulsos estavam presos. Os pés estavam atados entre si e a uma forte estaca vertical.
Colocaram de novo as meias na cabeça e retiraram a venda do rapazito.
Destaparam-lhe a boca para ele comer mas a vítima começou aos berros.
Levou uma valente bofetada e ouviu:
- Ó miúdo! Tu come e está calado! Só estarás aqui o tempo necessário para que o teu pai nos dê o dinheiro que lhe vamos pedir. Mas porta-te bem, porque senão nós podemos ser muito maus para ti, ouviste? – ameaçou uma voz de homem um pouco distorcida pela meia.
O mocito, feio que era, tinha os olhos muito arregalados e pareceu perceber pois comeu e bebeu sem dizer mais nada.
No final, puseram-lhe as mãos atrás das costas, amarraram-no deitado com a cabeça um pouco elevada e amordaçaram-no, desta vez com um pano, mas deixando os olhos descobertos.
- Agora só vimos cá amanhã à noite. Se o teu pai se portar bem ficas aqui pouco tempo. Entretanto, se tiveres sede, tens estes copos de plástico junto ao colchão e podes beber pelas palhinhas – falou o líder.
E continuou:
- Dorme e até amanhã!
Apagaram o candeeiro, saíram, tiraram novamente as máscaras improvisadas, removeram as luvas que tinham mantido sempre calçadas e, devagar, foram embora.
Já eram seis menos dez quando a Eulália, cinquenta anos envelhecidos, baixa, gorda, feia e abandonada pelo homem, estando preocupada com o atraso do petiz resolveu ir à escola ver se o Tiago lá estava.
Voltou ainda mais aflita e decidiu telefonar para a agência de viagens de que eram proprietários os pais do miúdo, Jaime e Zulmira Campelo.
Atendeu uma jovem empregada, a Catarina.
- Menina! Sou a empregada dos senhores. Queria falar urgentemente com o senhor Campelo – falou num tom que deixou a jovem apreensiva.
Esta fez um sinal para o patrão de que ía transferir a chamada enquanto dizia que era a empregada lá de casa.
- Está? Há algum problema, Eulália?
- Há, senhor Campelo! O menino Tiago ainda não apareceu.
E contou o que se passara.
- Vamos para aí de seguida. Até já!
Desligou e quasi berrou para a mulher:
- Ó Zulmira! O Tiago ainda não chegou a casa. Vamos ver o que se passa.
E virando-se para o Eurico Pereira, seu empregado e meio-irmão, ordenou:
- Tu ficas a tomar conta da firma como de costume.
Quasi de seguida saiu com a mulher deixando para trás um:
- Até amanhã!
Além do proprietário, da sua mulher e do meio-irmão, trabalhavam na empresa e assistiram a toda a cena, a Sandra Maciel, vinte e sete anos, estatura média, não propriamente bonita mas elegante e com um sorriso largo que permitia ver uns dentes esplendorosos e os muito jovens Paulo Nogueira, de origem modesta e apaixonado pela colega Catarina Sousa, de família com boas posses, alta, loira e bonita. Tinha um namorado do mesmo estrato social. O Paulo nem namorada tinha, sempre na esperança de que acabaria por encantar a jovem colega de trabalho.
O enigmático desaparecimento do Tiago foi o tema da conversa até todos saírem e o Eurico fechar o estabelecimento.