Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
A noite foi de insónia para muita gente: para o Tiago que só tarde e no escuro logrou sucumbir ao sono e à fadiga física e psicológica; para a mãe que cedo foi para a cama mas não conseguia pregar olho e de vez em quando se levantava para ir ver se o marido estava bem na sala onde, ora sentado ora deambulando, pensava na forma de ter o dinheiro todo preparado o mais depressa possível; ele mesmo se deitou tarde e teve de tomar uns comprimidos para dormir como o fizera cerca de uma hora antes a sua Zulmira; para o Morais que congeminava sobre a maneira de pôr em prática o que lera nos livros de Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Georges Simenon e outros; para o Eurico que ficara, naturalmente, perturbado; para a Eulália que molhou a travesseira com as lágrimas que verteu pelo seu menino; para os raptores, provavelmente...
Na manhã de terça-feira, enquanto o Jaime tratava de reunir o dinheiro para pagar o resgate, a mulher foi à escola para saber se alguém tinha visto o filhote. Ao fim de algum tempo regressou a casa pesarosa pois alguns alunos tinham-no visto virar para a rua nova...e mais não soube.
No caminho de regresso encontrou o vizinho Morais acocorado junto da berma do passeio.
- Bom dia, senhor Morais!
- Bom dia, D. Zulmira! Há alguma notícia?
- Venho agora da escola e ninguém o viu.
E contou-lhe tudo o que sabia, espicaçada pelo candidato a detective.
- Pois eu ando aqui a ver se encontro alguma coisa no chão que possa ter caído ao Tiago ou ao raptor. Eu diria antes, raptores, pois uma acção destas requer normalmente dois celerados, pelo menos.
- Muito obrigado pela sua colaboração! Agora vou a casa e depois para o escritório.
E despediram-se.
O António Morais continuou a sua pesquisa mas em vão. Andou mesmo a espreitar para o caminho entre o portão da vivenda do Campelo e a porta de entrada. Pensou:
- Se o teimoso do Jaime tivesse um cão ninguém poderia ter colocado a carta sem ser denunciado pelo animal. Mas ele diz que detesta bichos...
Quando reentrou em casa, elucubrou:
- A maldita chuva limpou possíveis pegadas que o portador da carta tivesse deixado. Mas acho estranho que tenham vindo fazer esse serviço tão cedo. Podia ter sido o Eurico a trazê-la. Mas é irmão do Jaime, embora não simpatize muito com ele. Enfim! Todos devem ser considerados suspeitos...
E sentou-se, mas continuou a matutar:
- Ora vejamos! Penso que serão mais do que um, os raptores. E das duas uma: ou é gente conhecida, daqui ou de perto, ou gente de fora eventualmente lesada pelo Jaime e que agora se quer vingar. Se fosse gente de fora provavelmente teriam sido vistos a rondar a casa para estudar locais e movimentações; vou tirar a limpo se alguém viu algo suspeito, mas não me parece que alguém tenha visto movimentos estranhos em dias anteriores. Se for gente de cá...acho que vou seguir a pista do Eurico e ver até onde leva.
Pouco depois andava a falar com os vizinhos e ninguém se tinha apercebido do que quer que fosse de invulgar nos dias anteriores.
Depois foi a casa do Campelo e falou com a Eulália.
Esta também não se dera conta de nada nem ninguém nos dias que precederam o rapto.
- Ó D. Eulália! O Sr. Eurico vive só?
A mulher estranhou a pergunta mas respondeu:
- Vive só! Mas com a idade que tem deve ter alguma amásia.
- E não sabe quem é? – inquiriu o antigo bancário.
- Eu? Estou sempre aqui metida. Se alguém souber alguma coisa é a gente da agência.
- Vou lá! – pensou o homem.
Conversaram mais um bocadinho sobre o tempo que, nessa manhã, estava mais simpático, cinzento mas sem chuva, e pouco depois despediram-se.
O “detective” foi buscar o seu Mercedes negro e dirigiu-se para o centro da cidade.
Passados uns vinte minutos entrou na loja, coisa que ninguém estranhou pois fazia-o pelo menos uma vez por semana.
- Bom dia a todos!
- Bom dia, senhor Morais! – ouviram-se só duas ou três vozes.
Olhou e viu que só faltava o seu amigo Jaime. Apesar do mau feitio deste, o vizinho entendia-se bem com ele pois era um tipo calmo e paciente.
- Estou a ver que o Jaime anda a tratar do assunto – disse.
- Sim! – respondeu a mulher sem levantar os olhos da secretária.
Notava-se que não queriam falar no rapto ou em qualquer tema que lho fizesse recordar.
- Vou à casa de banho e venho já! – avisou o António Morais.
Uma vez lá dentro escreveu num pequeno papel:
“O Eurico anda com alguma mulher?”
Guardou-o e reentrou no open space. Dirigiu-se para a secretária do jovem Paulo e sentou-se, ao mesmo tempo que lhe colocava debaixo dos olhos o papel em que acabara de escrever e perguntou:
- Então sempre vai passar uma férias de inverno aos montes Cantábricos?
- Se tudo correr bem espero fazê-lo. Aproveito os bons preços que a agência me arranja! – respondeu o moço que tinha vinte e dois anos.
E embrenhou-se a escrever qualquer coisa.
Logo a seguir o papel estava de novo em frente do reformado que leu:
“Anda com a Sandra, mas escondido do Sr. Jaime porque este não gosta que os empregados namorem uns com os outros”
Aproveitando o silêncio reinante o visitante falou para a Sandra:
- Então, Sandrinha! Como está a sua família? Os seus pais e a sua irmã?
- Estão todos bem! Mas eu não tenho irmã. Tenho um irmão: o Bruno.
- Ah...como está a minha cabeça! E que faz ele que também não me lembro?
- Trabalha numa agência imobiliária – respondeu descontraídamente a rapariga.
- E já é casado? Ora! Desculpe a minha curiosidade! Não responda para eu aprender a não ser metediço – procurou jogar o Morais.
- Não faz mal! Esteja à vontade! Ainda é solteiro mas vive com a namorada. E se quiser saber tem mais dois anos do que eu: vinte e nove
- Agora a juventude prefere co-habitar a casar. Se calhar é o que fazem de melhor.
Depois voltou-se para a jovem Catarina:
- E com a sua família também está tudo bem? Também vai co-habitar?
- Está sim, senhor Morais! – respondeu a linda jovenzinha.
E concluiu:
- Eu espero casar! Mas ainda só tenho vinte anos.
E a conversa acabou porque o Eurico propôs:
- Vamos almoçar?