Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
A quarta-feira decorreu sem novos acontecimentos significativos relacionados com o caso.
As pessoas estavam tensas e muito apreensivas, nomeadamente os pais, a Eulália e o Eurico. Os avós e o resto da família nem tinham sabido do rapto pois o Jaime não quis criar preocupações pois estava convencido de que o problema se resolveria rapidamente e a seu contento.
Ao fim do dia já o Campelo tinha todo o dinheiro reunido numa mala. A numeração das notas tinha sido registada.
À noite, o Paulo deu mais algumas indicações ao Morais que este apontou e os sequestradores foram fazer nova visita ao rapaz que continuava na cabana.
A quinta-feira amanheceu cinzenta mas sem chuva, como os dias anteriores. Umas gotas que aqui e ali íam caindo não eram muito incomodativas. O último dia de acentuada pluviosidade fora o do rapto, a segunda-feira.
A ansiedade estava latente no rosto das pessoas.
Sempre que um telefone ou um telemóvel tocava na empresa, todos os que lá estavam como que sentiam o coração parar de bater e, após constatarem que não era a chamada esperada, respiravam fundo e tinham um momento de descompressão. Mas logo voltava a inquietação. Para combater esta espera desesperante alguns fumavam mais que de costume e, embora sem vontade de o fazer, procuravam falar uns com os outros sobre tudo e nada, menos acerca do caso. Mas só estavam presentes o Campelo, a Sandra, a Catarina e o Paulo; a mulher do Jaime estava em casa acompanhada pelo cunhado pois a mensagem do raptor não dizia para onde seria feito o telefonema.
Eis que se abriu a porta e entrou o Morais.
- Bom dia! – saudou.
Desta vez, só o Paulo tivera disposição para responder.
Mais um toque dum telefone. Foi o da Catarina como de costume, pois ela é que atendia as chamadas para o fixo que provinham do exterior, mas quem estava a fazê-lo nessa manhã era o Jaime Campelo.
- Estou!
- Ora aqui estou eu, conforme prometido – falou uma voz de homem, visivelmente disfarçada, do outro lado.
E continuou:
- Já tem o dinheiro?
- Tenho! Tenho tudo! – respondeu, num tom vigoroso, o pai do garoto.
- Então amanhã, às onze horas, esteja junto da mata que há ao lado da ponte velha de pedra, em Ceifas. Conhece?
- Sim! – respondeu o Jaime.
- Mas não fica na estrada, naturalmente. Mete pelo atalho e só pára quando vir um obstáculo. Desliga o carro e sai com as mãos no ar. Nada de polícia nem de armas. Alguém entra com o seu filho para a viatura, abre a mala que deve estar na parte de trás, verifica se contém o dinheiro e depois sai, deixando lá o garoto. Finalmente, você dá meia volta ao carro e sai do atalho por onde entrou. Falei devagar. Entendeu tudo?
- Sim! Às onze horas no atalho da mata de Ceifas, não é? – pretendeu confirmar o homem.
- Exactamente! E nada de truques, para bem de todos.
E desligou.
O homem ouviu a ligação ser cortada, ficou com o auscultador na mão, deu um forte suspiro e finalmente pousou-o.
- Já está! É amanhã às onze!
Depois de ter ido buscar uma garrafa de brandy e de ter tomado dois ou três goles, sempre sem dizer mais nenhuma palavra, sentou-se, ligou para casa e contou a conversa com o sequestrador de forma que todos ouvissem.
O Morais aproximou-se do Paulo e perguntou-lhe baixinho:
- Porque será que o raptor ligou para aqui e não para casa?
- Sei lá?
- Porque sabia que o Campelo estava aqui!
- Humm...bem visto! – comentou o jovem enquanto abanava afirmativamente a cabeça.
Pouco depois o Morais chegou-se para junto do vizinho e sussurrou-lhe:
- Quero falar consigo a sós! Vamos até lá fora?
- Pois sim! Vamos ali ao café – anuiu o coxo.
Uma vez sentados numa mesa, disse o “detective”:
- Eu quero dizer-lhe que vou para lá pelas sete e meia da manhã, quando começar a clarear. A essa hora eles...eu digo eles porque tenho a certeza que são dois, pelo menos...a essa hora eles ainda lá não estão. Vou deixar o carro bem longe e escondido e depois vou a pé pela estrada e meto pelo atalho. Os raptores vão de carro, até porque tem de levar o Tiago, e eu vou tentar aprender o mais que puder acerca deles. Faça de conta que eu não estou lá, mas vou estar.
- Por mim acho uma boa ideia, mas não será perigosa?
- Não se preocupe comigo. E digo-lhe outra coisa: hoje de tarde já vou reconhecer o terreno. Quer vir comigo?
- Ó Morais! Você parece o Sherlock! Sim senhor. Vamos lá.
E combinaram a hora.
- Outra coisa. Sugiro que leve o Fiesta da sua mulher para se poder movimentar melhor na mata.
- Boa! Você é que devia ser o chefe da PJ – comentou, com um sorriso, o Campelo.
Pouco depois voltaram para o escritório.
Quando lá chegaram a Sandra disse de imediato:
- Telefonou a D. Zulmira a dizer que tinham ligado da GNR a perguntar se o Tiago já tinha aparecido. Ela disse que não e eles disseram que íam agora comunicar à Judiciária aquilo que o senhor tinha dito quando lá foi.
- Trabalham bem, estes tipos! Mas depois de eu ter o nosso filho connosco eles vão mesmo ter de apanhar o patife – desabafou o marido.
- Os patifes – corrigiu o Morais.
Eram sete da manhã de sexta-feira quando o Morais saiu de casa. Levou o carro, um Mercedes negro, e conduziu-o ainda de noite até uns três quilómetros da velha ponte de pedra, que uns diziam que era romana e outros que não. Depois foi a pé pela estrada, protegido por um crepúsculo ainda incipiente, e meteu pelo atalho até um ponto onde este terminava numa cerca de arame que delimitava um campo. Os carros não poderiam passar daí. Seria esse, provavelmente, o ponto onde o Jaime seria forçado a parar. Para voltar teria de fazer a inversão de marcha o que não era fácil e como certamente ainda ficaria a falar e acarinhar o filho os meliantes teriam tempo para se escapulir.
Depois regressou pelo mesmo caminho e postou-se num local de vigia improvisado, junto da ponte sob a qual agora passava um ribeiro com um caudal maior que o habitual graças à água que caíra. Mas como não chovia quasi nada desde segunda-feira, a lama que se formara já estava quasi seca.
Olhou o relógio e leu oito e quarenta. A espera seria longa. Olhou para o céu e pensou:
- Oxalá não chova hoje, senão apanho um resfriado ou até uma pneumonia.
E tirou um livro da algibeira da gabardina, instalou-se o melhor que pôde e começou a ler.