Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Domingo, 30 de Dezembro de 2007
Histórias curtas XXXV - No Salto do riacho
A Olga e a Dalila eram duas irmãs muito amigas, únicas filhas do engenheiro Luís Andrade e da sua mulher, a professora de Ciências, Ester.
A mais velha tinha dezassete anos e a outra, menos um.
Há já alguns anos que costumavam ir passar uma temporada, na estação estival, para os contrafortes da serra, no Minho litoral, numa velha casa que fora dos avós paternos e que o pai remodelara para a tornar mais confortável.
A habitação, rural, de paredes de granito, tinha um piso térreo que servira de armazém para cereais e de local para guardar uns galináceos, coelhos, porcos e mais algumas variedades animais. Agora era a garagem e o local para o engenheiro se entreter a brincar de marceneiro.
Umas escadas da mesma rocha granítica e com um corrimão em ferro pintado de verde, como a caixilharia em madeira das janelas, levavam ao piso superior onde uma moderna cozinha, uma sala bem confortável, três quartos, uma casa de banho e uma pequena instalação sanitária eram suficientes para os quatro no tempo sereno das férias.
Nesse ano resolveram levar para lá a prima Simone, também com dezasseis anos, que ficou a dormir no quarto mais pequeno, enquanto as manas partilhavam o mesmo aposento.
Ficava a velha casa junto a uma estrada municipal, estreita e de pavimento em alcatrão esburacado devido aos seus muitos anos e pouca manutenção, com poucas habitações nas vizinhanças, formando uma minúscula aldeia. Um lugarejo, melhor dizendo. Algumas permaneciam vazias durante todo o ano, só recebendo os seus proprietários no período de verão.
Duas eram de famílias de emigrantes em França, mas as relações que mantinham com os Andrade não eram as melhores: para uma delas, vinha um casal, os Sousa, cujos dois filhos preferiam passar férias campistas no Algarve; para a outra vinha uma família com avós, filhos e netos.
O velho casal Pereira vinha para a casa de onde haviam partido para fazer vida noutras paragens, Com eles vinham as filhas e os genros. A mais velha, Margarida de seu nome, era casada com o Maurício e não tinham descendentes. A outra, a Assunção, além do seu Manuel trazia os dois rapazotes: o João, com dezanove anos, atrevido, malcriado, baixo e gordalhufo e o coitado do António que um escaldão com água fervente quando era pouco mais que um bebé deixou com o rosto transfigurado que nem várias cirurgias plásticas tinham conseguido minorar de forma radical. Uma delas chegou mesmo a piorar o seu aspecto pouco menos que monstruoso. Tinha agora quinze anos e muitos traumas psicológicos que faziam dele um solitário.
As filhas do Andrade detestavam os rapazes.
Mas havia outros habitantes na pequena aldeia.
Além de vários idosos, o Zé Moreira e a Ernestina eram os mais abastados: além de alguns terrenos de minifúndio, ela tinha uma loja que, sendo a única, era café, tasca, botica e mini mercado; eram agentes de uma companhia de seguros e dum banco, além de posto dos correios e até um computador para uso da Internet lá puseram.
O seu único filho, o Amadeu, já tinha vinte e cinco anos e ainda estudava Electricidade na cidade mas passava uma parte do verão a ajudar os pais. Todavia, preguiçoso como era, não tinha a utilidade que eles pretendiam.
 
- Amanhã de manhã vamos para o Salto, tomamos banho, merendamos e vimos antes do sol se esconder? – propôs a Dalila às outras duas.
- Boa ideia! – aquiesceu a Olga.
- Já lá não vou há dois ou três anos! Aquilo é tão giro... – aprovou, tacitamente, a Simone.
- Então vamos falar com a mãe e preparar as coisas – disse entusiasmada a mana mais jovem.
E assim, na manhã seguinte, já o sol ía alto quando abalaram as três com roupas e alguns utensílios de praia, uma lancheira para a comida, a mala térmica para os refrigerantes e uma manta. Seguiram cerca de um quilómetro a pé pela estrada para nascente até ao ponto onde havia um carreiro aberto por entre os silvados e outra vegetação de baixo porte, pinheiros e eucaliptos. Mais quinze minutos e estavam na clareira onde o rio, que era mais ribeiro do que rio, deixava cair as suas águas do cimo de um rochedo com cerca de seis metros para uma curiosa concha natural que estava cheia de líquido formando uma pequena lagoa cuja conteúdo depois corria para jusante, saltitando por entre pedras arredondadas pela erosão. Estavam no local conhecido como o Salto.
Era na concha que costumavam banhar-se.
- Atenção, meninas! – avisou a Olga, branca e aloirada – Não se esqueçam que junto da rocha alta é muito fundo. Nadem na zona em que há pé.
- Nós sabemos! – disse a Dalila, ruiva e sardenta como a mãe.
Estenderam a manta e despiram-se, ficando em biquini.
As mais novas foram logo brincar para a água enquanto a mais velha se esticou ao sol quente dessa manhã.
- Vamos pôr-nos nuas? – sugeriu a azougada filha mais nova do Andrade.
- Vamos! – anuiu, de imediato, a prima Simone, morena e um pouco anafada.
A que estava esticada como uma lagartixa achou que a ideia não era má pois assim poderia bronzear-se de forma mais completa, e pouco depois estavam todas como Eva no Paraíso.
A Olga não demorou muito a ir molhar-se mas rapidamente voltou para a toalha colocada sobre uma formação rochosa onde deixou o sol secar a sua pele clara e macia.
Mas, um ruído de alguém a mexer-se no matagal chamou a sua atenção.
- Meninas! Vistam já os biquinis. Acho que está ali alguém a espiar-nos – gritou para as outras enquanto se vestia.
A irmã e a Simone vieram rapidamente, vestiram as minúsculas peças de banho, e juntaram-se à Olga.
- Tens a certeza? – perguntou a prima com um ar de apreensão.
- Não sei! Pode ser um animal – esperem aqui que eu vou dar uma espreitadela.
Levantou-se resoluta e caminhou para o ponto de onde viera o som que a alarmara.
De repente, um vulto que estava acocorado ergueu-se e começou a correr pelo meio da mata.
- Estava aqui alguém! Era um homem, mas não consegui ver mais nada – alertou quando chegou junto das outras duas.
- Vamos embora! Estou com medo! – disse a Simone.
- Ora! Se já se foi embora podemos comer primeiro – alvitrou a destemida Dalila.
E assim fizeram. Mas o pic-nic não foi nada agradável pois no ar pairava o espectro do homem misterioso.
Logo depois encetaram o regresso, embora a contra gosto da Dalila.
- É melhor não dizer nada aos pais senão eles ficam aflitos e nunca mais nos deixam ir ao Salto – propôs a desempenada jovem.
- Talvez tenhas razão! – disse a mais velha.
Passados dois dias a Dalila avançou com a ideia de irem novamente ao Salto.
- Nem penses nisso – replicou a Simone.
- Claro que não! – corroborou a Olga.
Mas a jovem destemida e aventureira continuou a magicar:
- Hei-de saber quem é que nos esteve a espreitar.
E, passados mais três dias, resolveu sair de casa sozinha, a meio da manhã, dizendo a todos que ía dar uma volta na velha e já enferrujada bicicleta do pai Andrade.
Saiu a pedalar e rumou pela estrada para leste, não sem antes fazer barulho suficiente para que as pessoas que viviam no lugarejo pudessem perceber que ía sair.
Quando chegou ao carreiro escondeu o velocípede e atravessou para o outro lado da rua esperando que aparecesse alguém.
Não tardou muito que visse um vulto de homem que, antes de atingir esse ponto, se embrenhou no mato.
- Será mesmo aquele o tipo que nos espiou da outra vez? Quem diria! – pensou para consigo – O sítio por onde meteu deve ir dar ao Salto. Vou por lá!
E, na imaturidade dos seus verdes anos, penetrou a mata no ponto onde o perseguidor o fizera.
Mas esse caminho estava pouco desbravado e não tardou a ficar com várias arranhadelas no corpo. Mas nem isso a demoveu. Lentamente foi avançando até chegar junto do descampado onde ficava a concha.
Parou!
Olhou à volta mas não viu ninguém.
Onde estaria o mariola?
Baixou-se o mais que pôde quando, vindo sem saber de onde, sentiu um corpo tombar sobre ela.
- Ó minha linda! Agora vais despir-te para brincarmos os dois – disse uma voz de homem.
A rapariga sentiu-se manietada mas, pior do que isso, gelou ao contacto com a lâmina fria de uma faca de mato junto ao pescoço.
O atacante, homem forte, procurou então rasgar-lhe a roupa. Usou a faca mas provocou um ligeiro ferimento que sangrou. Espetou a arma branca no solo e passou a usar as mãos grandes para desnudar a jovem.
Esta, sempre lesta a raciocinar e a agir, enquanto se debatia com todas as forças que tinha conseguiu agarrar o cabo do esquecido objecto de morte e espetou-o no ombro do meliante fazendo com que este desse um grito e aliviasse a pressão que sobre a rapariga exercia o que permitiu à Dalila escapulir-se com a roupa rasgada mas com a faca na mão.
Foi para o descampado e depois meteu pelo carreiro mais liberto de silvado que havia usado com as outras; andou o mais depressa que pode até à estrada.
Nem se lembrou da bicicleta!
Continuou a corrida até entrar em casa, esbaforida.
- Que aconteceu? – perguntou a mãe, estupefacta ao ver o quadro que tinha diante de si.
- Já não há perigo! Conto daqui a um bocadinho! Deixa-me descansar – disse, enquanto se estendia num sofá e deixava que a respiração se tornasse menos ofegante.
Apareceu o resto da família.
Finalmente contou o que se passara mas sem referir quem fora o agressor.
- Mas afinal quem era o sacana? – perguntou o Luís Andrade já um tanto exasperado com tanto suspense.
- Deve ter sido o mesmo que nos espiou no outro dia lá no Salto...imaginem: o Amadeu da Ernestina e do Zé Moreira – revelou, finalmente, a moça.
Todos ficaram boquiabertos e calados durante algum tempo.
- Mas que bandido! Agora temos de apresentar queixa na Guarda – falou o pai.
- Mas antes vamos ao Centro de Saúde para tratar dessas arranhadelas todas que tens no corpo – disse a mãe.
- Tu és danada! – interveio a Olga em tom de censura e abanando a cabeça.
- Acho que vou escrever o argumento para um filme – rematou, a rir, a valente Dalila.


publicado por António às 19:19
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De Maria Papoila a 1 de Janeiro de 2008 às 11:28
Querido António:
Uma rapariga destemida que se meteu numa grande aventura que felizmente terminou bem. Gostei de ler-te.
Um 2008 pleno de inspiração para nos brindares com teus contos e que vivas os momentos de alegria de cada dia.
FELIZ ANO NOVO!
Beijos


De Caiê a 1 de Janeiro de 2008 às 17:06
A rapariga é de força! E ele bem que mereceu!
Feliz ano novo! beijinhos.


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