Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Domingo, 13 de Janeiro de 2008
Histórias curtas XXXVI - Ciúme
Reconversão do texto “Diálogos de gente II – O ciumento” de 18 de Março de 2006
 
Domingos entrou em casa e foi ao quarto cumprimentar a sua mulher Manuela que, tendo chegado uns minutos antes, ainda estava a vestir roupa mais confortável para as lides domésticas.
- Olá, querida! – disse ele.
- Olá, Mingos! Correu tudo bem? – retorquiu a consorte.
- Sim! Tudo dentro do normal. Vou arrumar a pasta e depois venho arranjar-me.
Antes, ainda viu o correio postal e ligou o personal computer.
Quando voltava para o quarto cruzou-se com a Manuela que já vinha com um pijama de meia estação vestido.
Algum tempo após sentaram-se à mesa para jantar.
- Hoje saíste com um vestido muito ousado – fez notar o homem.
- Eu? Achas que aquele vestido com um ligeiro decote, de cor azul-marinho, saia pelo joelho e, nisso talvez tenhas razão, um pouco apertado porque engordei qualquer coisa, é provocante? Não tem mangas mas eu uso um blaser – disse a mulher.
- Pois! Não tem mangas, é curto e está muito justo – insistiu ele – e quando te sentas ou levantas expões-te muito.
- Mas sei sentar-me e levantar-me; não faço figuras tristes – ripostou a mulher.
- Gostava que não o usasses mais – alvitrou o homem.
- Ó Mingos! Não comeces com a mania de que todos os homens me cobiçam. E se o fizessem era uma razão de orgulho para mim. Posso mandar alargar um pouco o vestido e ele fica impecável – sugeriu ela.
- Não sei! Já sabes que eu gosto que andes recatada. Lá no teu escritório há muitos homens e eu já vi como alguns olham para ti – teimou o Domingos.
- Sim? Olha que bom! É sinal de que ainda estou apetitosa. Também com 27 anos e sem filhos...
- Não tenhas essas atitudes de leviana, Manela! Sabes bem como gosto de ti e me custa ver-te a ser olhada por outros homens – disse o marido.
- Olha, meu querido! Namoramos três anos e somos casados há dois. Quando isso aconteceu eu já sabia que eras ciumento. Na altura, achei que seria uma prova de amor e fidelidade e até gostava. Mas agora fazes-me sufocar! Não penses que vou passar a vida a usar véu ou mesmo “burka” como as desgraçadas de algumas árabes. Sabes que te sou fiel, mas tenho a minha individualidade própria e não quero que ela deixe de se desenvolver só porque tu não queres isto e não queres aquilo – discursou a Manuela.
- Eu sei que às vezes sou um bocado chatinho. Mas gosto tanto de ti que só a ideia de te perder me deixa maluco – chorou-se o Domingos.
- Pois olha que se insistes nessas atitudes é que acabas por me perder – disse ela, ameaçadora.
- Nem digas uma coisa dessas, mulher! Era a minha desgraça! Tu nunca me deixes! – suplicou o homem.
- Não deixo mas tens de me soltar para viver e respirar – falou a mulher.
E continuou:
- E na sexta-feira já vou fazer um teste à tua capacidade de me deixares viver. Vou ao jantar de aniversário da empresa que é só para colaboradores. Tu não podes ir. E depois do jantar parece que vamos a um bar passar um bocado da noite. Espero que não ponhas objecções, o que não adiantava nada, diga-se, nem me censures se chegar mais tarde. Eu ligo-te pelo telemóvel e dou-te conta de como as coisas estão a correr. E tu ficas em casa ou vais sair...fazes como quiseres. Só não admito que me apareças no restaurante como no ano passado, para me trazeres para casa. Acabei sendo gozada pelas colegas que acharam que tu devias ser um tipo do século XIX – desabafou a mulher.
- Essas tuas colegas são muito levantadas e atiradiças. Não me agrada que andes com elas – manifestou-se o Mingos.
- E eu também não gosto que andes com aquele Simões que tem tiques de maricas que até faz aflição – respondeu ela.
- Não desvies a conversa! – disse ele – O que está em discussão és tu e as desavergonhadas das tuas amigas.
- Desavergonhadas? Ó pá! Tem juízo! Deixa-me que te diga que cada vez me parece mais que tens de ir a um psiquiatra tratar esse sentimento de posse que tens em relação a mim. Porque se não o fizeres, o casamento acaba mal!... – ameaçou a Manuela.
- Tu nem penses em abandonar-me, Manela! Nem penses! – e foi a vez dele elevar o tom de voz.
- Que é que tu fazes? Matas-me, é? Matas-me? – provocou a mulher – Olha que eu tenho um medo!... Já me deixaste mal disposta. Com licença!
E levantou-se da mesa da cozinha onde costumavam jantar, foi para a sala, ligou o televisor, acendeu um cigarro, estirou-se no sofá e disse, baixinho:
- Quem me havia de sair na rifa!
 
Chegou a noite do jantar comemorativo do décimo aniversário da empresa onde trabalhava a Manuela Sampaio.
Era uma mulher com formas muito bem delineada na face e no corpo.
Nesse fim de tarde foi ao cabeleireiro que lhe penteou os cabelos de um lindo castanho claro e que lhe desciam um pouco abaixo do pescoço, com mestria e bom gosto.
Em casa, e porque a noite se previa fria, vestiu umas calças pretas e largas, uma camisola de gola alta de lã branca e canelada e um blaser também preto que lhe assentava maravilhosamente. O conjunto era complementado com uns sapatos pretos de salto alto e um colar de ouro que lhe emprestara a mãe, uns brincos vistosos, anéis variados e uma maquilhagem discretamente eficaz.
Em suma: estava uma “brasa”.
Quando o Domingos Pacheco chegou a casa e viu a mulher tão gostosa não resistiu e disse:
- Tu devias arranjar-te assim quando sais comigo e não quando vais a uma festa sem mim.
- E eu quando saio contigo vou vestida de maltrapilha? – replicou a Manela – Estou de saída! E não me apareças, hoje! A noite é minha!
Beijou o marido e saiu deixando-o especado. De repente este foi à janela a tempo de ver a sua mulher a entrar para um carro.
- De quem será aquele carro? – interrogou-se.
Não fez jantar.
Comeu uma sande, bebeu uma cerveja, comeu fruta e uma fatia de bolo que estava no frigorífico, arrumou o pouco que havia para arrumar e foi postar-se no seu sofá preferido a ver televisão.
Mas o pensamento não deixava de voar da TV para o restaurante e deste para o écran.
Pouco passava das nove e meia quando resolveu sair.
Foi à garagem, meteu-se no carro e rumou ao “Canto das sereias”, o
restaurante onde decorria o repasto comemorativo.
Após ter chegado estacionou em frente do estabelecimento de restauração mas num local mal iluminado.
Lá dentro, entre os vinte e tal comensais, quasi todos jovens, a animação era grande. Poucos tinham levado carro. Alguns preferiram ir de táxi para poderem beber sem medo de depois terem de soprar ao balão do teste de alcoolemia.
A Teresa, que dera boleia à Manela e não bebia álcool, levantou-se dizendo:
- Vou ali ao carro buscar o telemóvel e venho já.
Por feliz ou infeliz coincidência, o Domingos tinha estacionado mesmo ao lado da colega da mulher. Como era um Toyota comprado poucos dias antes, o homem ainda não o conhecia.
Mas a Teresa reconheceu o carro do ciumento marido da amiga.
Decidiu voltar para dentro sem nada dizer mas, de repente, dirigiu-se para o Focus, bateu no vidro do atrapalhado Mingos e, após este ter aberto a janela, disse:
- Ó pá! Vai para casa que daqui ainda vamos a um bar e a tua mulher vai comigo.
- Eu posso estar aqui, não posso? – ripostou o homem – Então desanda porque não tens nada com isso.
- Tem juízo, pá! Vai-te tratar! – e a mulher dirigiu-se de novo para a mesa onde a boa disposição reinava.
O Melo é que não estava muito bem do estômago, mas umas pastilhas ajudavam a que aguentasse a pedalada dos outros.
Entretanto, a Teresa foi segredando qualquer coisa ao ouvido de todos os colegas, com excepção da Manuela.
Terminada esta parte da festança, prepararam-se para abalar até ao “Bono”, um bar com karaoke que não ficava muito longe.
Mas, surpresa das surpresas, vários dos homens dirigiram-se com facas em riste para o carro do atónito Domingos.
E foi vê-los, enquanto riam a bom rir e diziam umas piadas ao marido ciumento, a rasgar os quatro pneus do Focus.
A Manela assistiu à cena, também ela admiradíssima, mas acabou por se rir à gargalhada, aproximar-se do Ford e dizer para o homem:
- Eu não sabia que te íam fazer isto. Até acho que foi muito bem feito. Mas se não aprenderes desta vez prepara-te que vou falar com um advogado para pedir o divórcio.
O ciumento compulsivo, se já estava furioso, pior ficou. Abriu o porta-luvas do carro, retirou de lá um pequeno revólver, abriu totalmente a janela e disparou as seis balas que ele continha.
Duas pessoas caíram.
Mais dois ficaram feridos ligeiramente.
Algumas ambulâncias foram chegando e um carro da polícia também.
Mas o Domingos já tinha sido amarrado por alguns homens que o entregaram aos agentes.
A Manuela estava aterrada. Também foi levada para o Hospital em estado de choque bem como os quatro feridos.
Mas nenhum fora atingido com muita gravidade.
 
Um mês depois já todos tinham tido alta e a Manuela Sampaio estava a tratar da papelada para o divórcio.
O Domingos Pacheco estava em prisão preventiva e a ser sujeito a exames do foro psiquiátrico por pedido do seu advogado.


publicado por António às 14:34
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De andorinha negra a 13 de Janeiro de 2008 às 20:36
O ciúme é uma coisa terrível! Mas a Manela também era provocadora, bolas! De qualquer modo, acho que o divórcio foi o melhor que tiveram a fazer. Mas o que esperará o pobre do Domingos?...

Bjs


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