Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Reconversão do texto “Diálogos de gente VII – O corno” de 16 de Abril de 2006
Sábado à tarde.
O cinquentão Augusto Simões, professor de História, sabendo que a sua mulher Maria de Fátima, também docente da mesma disciplina mas noutra escola, tinha um compromisso no exterior com umas amigas, chamara a sua casa e esperava a chegada do seu irmão mais novo.
Serafim tinha menos dez anos do que ele.
A mulher tinha menos quinze anos. Ainda não fizera quarenta.
Quando o mano chegou, Augusto, muito circunspecto, disse-lhe:
- Ó Serafim! Preciso de alguém para desabafar.
- Sou todo ouvidos! – incitou o outro.
- Sabes que gosto muito da Fati, mas descobri que ela me trai.
Fez uma pausa.
O irmão fitava-o fixamente e com o rosto fechado, mas não dizia nada.
Por isso, continuou:
- Eu já há uns tempos que andava desconfiado. Todas, ou quasi todas as tardes de quarta-feira me dizia que ía até à baixa ver se havia alguma coisa interessante para comprar e encontrar-se com umas amigas. E aos sábados a mesma coisa. Mas, nesse dia, algumas vezes eu acompanhava-a. Até que resolvi segui-la na última quarta.
- Oh pá! – exclamou o outro.
- Deixa-me acabar! – pediu o Augusto e prosseguiu – Vi-a entrar para uma hospedaria. Passado pouco tempo entrou um tipo cuja cara me era familiar. Um colega dela, lá na escola. Ao fim de quasi duas horas a minha mulher saiu e pouco depois ele fez o mesmo. Cada um seguiu o seu caminho e ela regressou a casa.
- Desculpa-me interromper-te! – disse o Serafim – Mas porque desconfiaste?
- Sabes que ultimamente a tenho procurado pouco! – disse o Gusto – Ando com muito trabalho, os anos vão pesando e quando chegam as onze ou onze e meia vou para a cama e adormeço como uma pedra. Dantes, ela ainda me espicaçava e eu correspondia algumas vezes. Outras, dizia que queria dormir e descansar. Actualmente, nem eu nem ela. Não temos relações há algum tempo.
- Estou espantado! E agora? – perguntou o irmão.
- Agora? – e fez uma pausa, de cabeça baixa, o Augusto – Eu ainda gosto muito da Fati e não sei bem o que fazer. Digo-lhe o que sei ou não? Provavelmente não digo nada e vou tentar reatar uma actividade sexual mais frequente. Para isso preciso de trabalhar menos e descansar um pouco mais. Ela é nova e ainda com muito sangue na guelra. Pensei dizer-lhe tudo, mas o mais certo é perdê-la para sempre. Pode ser que, não falando em nada, a reconquiste. Como não falta muito para as férias vou propor-lhe fazermos uma viagem interessante, ao estrangeiro. Tentar que ela se afaste dele. E às quartas à tarde vou arranjar pretexto, pelo menos algumas vezes, para a acompanhar.
- Sabes se ele é casado? – quis saber o mano mais novo.
- Penso que sim.
- Podias contactar a mulher dele e contar-lhe. Assim seriam dois a ajudar ao fim da relação – sugeriu o Serafim.
- É uma ideia. Nem me tinha lembrado disso – retorquiu o enganado.
E continuou:
- Vou pensar melhor nessa hipótese, mas primeiro vou tentar o que te disse. Que achas?
- Se não lhe queres dizer nada é porque não estás interessado na separação. Portanto, e considerando que queres salvar o casamento, acho que a tua ideia parece ser boa. Mas não sei se o que há entre eles é meramente carnal ou é mais do que isso. Se ele for casado e também não quiser acabar com o casamento, talvez resulte. Embora a ajuda da mulher dele pudesse ser preciosa – alvitrou o Serafim.
- O pior é se ela resolve querer separar-se dele; assim fica o caminho aberto para a Fati e o gajo – lembrou o marido.
- Tens razão! Sabes que é muito difícil dar conselhos em situações destas, especialmente quando não se conhece as pessoas todas e um conjunto de detalhes. Não sei bem o que te diga! – confessou o irmão.
- Eu compreendo-te! Mas quis dizer-te isto para desabafar e para que tu estivesses ao corrente da situação. Pode ser que possas ajudar. Se não for hoje, noutras ocasiões. – disse o Augusto – Sabes que já me sinto mais desanuviado?
- Eu gosto muito de ti, mano. Na medida das minhas possibilidades, tentarei ajudar-te a reconquistar a tua mulher e a afastar o outro.
Com os olhos brilhantes, Augusto levantou-se e foi dar um beijo ao irmão.
- Eu sei que posso contar contigo. Mas o papel principal tem de ser meu.
Conversaram ainda algum tempo sobre este e outros assuntos.
Por fim, o mais novo despediu-se e saiu.
E foi pensando consigo mesmo:
- Então o meu irmão é corno! E corno manso! Mas isso é o que mais há! Como se costuma dizer: um homem sem cornos é como um jardim sem flores. Oxalá consiga atingir o objectivo de reconquistar a mulher. Ele gosta mesmo dela. Mas duvido que ela o mereça!
Finalmente, e após mais uns dias de investigação e meditação, o Augusto descobriu que a mulher do amante da Fati era professora na mesma escola onde ele leccionava e decidiu arriscar e ir falar com a colega Judite. Ela era uma professora de Português de uns quarenta e cinco anos, mais coisa menos coisa, que parecia ser a idade do marido, o professor de Matemática, Jaime Pereira.
Optou por a visitar em casa numa das quartas-feiras em que o marido saía, alegadamente para ir dar umas explicações a casa de dois irmãos.
Receosamente tocou à campainha. Veio à porta uma bonita moça dos seus vinte anos.
- Pretendia falar com a Sr.ª Dr.ª Judite Pereira – disse.
- E quem devo anunciar?
- Augusto Simões, colega na escola.
- Um momento, por favor.
Pouco depois apareceu uma mulher muito elegante e, se não era uma beldade, tinha um ar sensual e apelativo.
- Desculpa aparecer assim, mas trata-se de um assunto muito sério e precisava de falar consigo a sós – sussurrou.
- Mas está aqui a minha filha! – falou também baixo a professora, como que influenciada pelo homem – Vamos ali ao café?
- Está bem!
- Olguinha! – gritou – Vou ali ao café falar com este colega e volto breve.
- Até já! – respondeu a moça.
Uma vez acomodados e depois de ela ter pedido um café e ele um descafeinado, o Augusto contou tudo o que sabia sobre os respectivos cônjuges.
A Judite ouviu-o atentamente mas parecia esboçar um ligeiro sorriso em vez de fechar o rosto ou soltar exclamações de admiração.
Por fim, ela falou:
- Eu já sabia isso tudo! O que tu fizeste já eu fizera também. Mas não sabia que atitude tomar e fui deixando a coisa correr.
Quem mostrava uma cara de espanto era o professor.
Mas ela continuou:
- Enquanto falavas, ocorreu-me uma ideia que é bastante perversa mas que acaba por se encaixar no adágio “amor com amor se paga” só que neste caso seria “cornos com cornos se pagam”.
- Mas…
- Exactamente! Tu parece que andas a seco e eu a seco ando. Tu parece não quereres destruir o teu casamento e eu, pelo menos para já e por razões um tanto complicadas e que não vem ao caso, também não. Portanto, enquanto eles se consolam, nós também nos consolamos e ao mesmo tempo vingamo-nos…
- Agora até me deixaste um tanto zonzo…
- Acredito! Já andava a pensar em o trair mas não sabia como: tu és o tipo ideal. Para que saibas, até tenho um fraco por ti…
- Confesso que também te acho uma mulher muito interessante... – descaiu-se o Augusto.
- Então começaremos por ir ver uma sessão de cinema no sábado à tarde e depois deixamos as coisas correrem normalmente. Dá-me o teu número do telemóvel e toma nota do meu.
Feita a permuta…
- Tu surpreendes-me com a capacidade de agir de forma tão fria e calculista. – deixou escapar o homem – Não gostas do Jaime?
- Gosto! Mas os meus sentimentos arrefeceram muito depois de ter descoberto a traição. Juro-te que não estou apaixonada.
- Eu também não! Mas ainda gosto muito da Fátima e tudo isto me tem custado imenso – confessou o Augusto.
E continuaram a conversar até acharem que era tempo de irem cada um á sua vida.
Conheciam-se mal mas, a hora e meia de conversa tão íntima e tão cúmplice, pareceu fazer nascer entre ambos uma estranha atracção.
E começaram rapidamente a ter encontros íntimos exactamente nas mesmas ocasiões em que a Fátima e o Jaime estavam juntos.
Iam para uma residencial num local bastante distante daquela onde o outro par se encontrava.
Até que, passados uns três meses, e quando o Augusto já nutria um importante afecto pela Judite, ela propôs:
- Da próxima vamos à “Rainha de espadas”. Certo?
- Onde eles se encontram? A que propósito? – inquiriu ele.
- Ora! É altura de saberem que nós estamos a par de tudo e que eles também são cornudos – falou ela com a frieza habitual.
- Achas boa ideia? Parece-me que vai perturbar a paz reinante – disse o Gusto em tom que deixava transparecer desacordo.
- Pois eu acho que é altura de definir as coisas: ou cada um volta para o seu parceiro, ou divorciamo-nos e eles fazem como quiserem e nós passamos a viver na mesma casa ou, no mínimo, a assumir publicamente a relação e a dormir juntos. Esta situação não se pode eternizar! – avançou, decidida, a mulher.
- Dá-me uns dias para meditar no assunto, sim?
- Ok! Uma semana? – sugeriu ela.
- Sim! Penso que é suficiente – anuiu ele.
E ao fim dos sete dias ele apareceu com a resposta:
- Acho que tens toda a razão! É tempo de decisões mais definitivas.
E quatro dias depois foram para a ”Rainha de espadas” e sentaram-se num sofá junto à porta mas pouco visível para quem entrasse na residencial.
Não tardou muito que aparecesse a Fátima.
Quando os viu sentiu um calafrio e ficou especada, mas a Judite disse-lhe:
- Pode estar calma! Não vamos para o vosso quarto.
Levantou-se, aproximou-se dela e continuou:
- Devo dizer-lhe que o vosso segredo já não o é há muito tempo. O que vocês não sabiam era que eu e o seu homem andávamos enrolados…
Neste momento entrou o Jaime que ficou parado junto da porta ao ver as duas mulheres. O seu primeiro pensamento foi fugir, mas conteve-se.
O Augusto levantou-se então e sugeriu:
- Vamos para os nossos quartos! – e acrescentou – Eu vou com a Judite, obviamente. E depois podemos ir jantar juntos e conversar.
- Penso que temos de conversar mas não hoje! – falou o recém-chegado, ainda sem perceber exactamente o que se passara – Primeiro quero falar com a Judite e com a Fátima.
- Muito bem! Eu também quero falar com elas. Portanto agora vamos ao amor e depois combinamos um jantar a quatro, se assim entenderem – falou, com uma frieza que o tornava irreconhecível, o Augusto.
- Então até mais ver! Vamos para cima! – e a Judite começou a pisar os degraus um a um.
O amante seguiu-a, como sempre, e os outros, bem conhecidos da funcionária da recepção, ficaram a olhar um para o outro com cara de basbaques enquanto a rapariga exibia um sorriso mordaz.
- Bom! Subimos, meu amor? – convidou a mulher.
Ele hesitou e respondeu:
- Sim! Mas tens de me explicar o que se passou.
-Sim, meu querido! Mas parece que brevemente vamos estar juntos muito mais tempo do que agora.
Deram-se as mãos e subiram também as escadas, dirigindo-se para um dos quartos onde tantas vezes se tinham amado.