Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Albertino Simões era um velhote já com mais de oitenta anos que acabara de enviuvar da sua querida Delfina.
Esta, dez anos mais nova, tinha ainda uma vitalidade enorme. Era a verdadeira comandante daquele exército de dois soldados que vivia num pequeno apartamento para onde se havia mudado há três anos, após que o seu benjamim, o João Paulo, deixara a casa onde ele e os seus três irmãos mais velhos haviam nascido e sido criados por um pai então rigoroso e uma mãe que sabia muito bem como simular que desempenhava um papel secundário.
O mais velho era o Pedro, com quasi cinquenta anos, que vivia com a Ana Maria, sua mulher, e mais dois rapazes num andar em Vila do Conde.
Depois tinha nascido a Júlia que casara com um oficial do Exército, o Adriano, e agora estava a residir em Santarém. Tinha quarenta e cinco anos e também dois filhos: um casal.
O terceiro era também uma mulher. Sofia, de seu nome, tinha quarenta e dois anos e vivia numa moradia em Oeiras com o marido Vítor, um economista do Banco de Portugal, tipo muito ocupado mas que tivera tempo para fazer quatro filhos à mulher: dois casalinhos.
Nascido já tardiamente, o João Paulo, tinha trinta e três anos e há quatro que fora viver com a Mafalda, de quem teve uma menina, para Rio Tinto.
Há dois anos o ancião tivera uma trombose que o deixou com significativas limitações no lado esquerdo do corpo. E era a mulher, frenética, inteligente, lúcida, quem tudo comandava e de tudo tratava. Que fibra ela tinha!
Mas um ataque cardíaco levou-a para o hospital onde esteve nos cuidados intensivos até a máquina que lhe dava uma vida artificial ter sido desligada.
Foi o momento de a família se reunir.
Nem todos, diga-se, pois alguns dos netos não vieram prestar a última homenagem a esta mulher anónima mas cheia de méritos pessoais.
Mas isso acontece muitas vezes!
Cumpridas as exéquias fúnebres e afastados os demais, Pedro convocou o irmão, irmãs, cunhados e cunhada para uma reunião.
Tema: o que fazer com o querido pai.
Durante os dias em que a D. Fina estivera hospitalizada fora a empregada que ía lá a casa e a nora Ana Maria quem cuidaram dele.
Mas isso era uma situação passageira. Impunha-se encontrar uma outra, definitiva.
A idade, as deficiências físicas e também uma já avançada esclerose mental obrigavam a que fosse necessária uma grande disponibilidade para cuidar dele.
Na casa do velho Albertino fizeram a tal reunião, depois de tomadas as cautelas para que ele de nada se apercebesse.
Pedro equacionou o problema e disse que não tinha casa com capacidade suficiente para lá ter o progenitor, apesar de que, se o pudesse fazer, não passaria o testemunho.
- Vocês sabem bem como eu gosto do nosso pai! – repetiu duas ou três vezes.
Júlia, a mulher do militar, alegou que apesar de todo o seu amor pelo papá não se poderia comprometer pois o marido poderia ser transferido, como já acontecera algumas vezes, e toda a família tinha de o acompanhar. Aliás, esses eram momentos sempre complicados pois ela era professora e havia um período de tempo em que o casal estava separado. Além disso, o pai poderia sentir-se desenraizado:
- Sabem como são os velhos – concluiu.
Sofia pegou no argumento do desenraizamento do velho e acrescentou o dos quatro filhos:
- Se tivesse condições, poderia assumir a tutela do papá e até arcar com todas as despesas. Mas com quatro jovens em casa...não dá! Não dá mesmo! Mas tenho pena de não poder.
Finalmente, o João Paulo, que vivia num apartamento com dois quartos, disse:
- Apesar de gostar imenso do paizinho, não o posso ter no meu T2. E a miúda ainda é muito pequena e dá imenso trabalho.
Depois de todos terem falado, o Pedro retomou a palavra:
- Já sabia que isto iria acontecer! Ninguém tem possibilidades de tomar conta do nosso pai. Por isso, penso que temos de arranjar depressa uma saída diferente. Julgo que não haverá oposição se disser que é preciso arranjar, e rapidamente, um lar onde o pai possa ficar e seja tratado com dignidade. E digo rapidamente porque a situação actual não é sustentável para a Ana Maria.
- Tens toda a razão! – interveio o João Paulo – Por isso eu já tenho uma proposta de um lar excelente que fica na zona de Santo Tirso e reúne todas as condições. É cara, claro! Dois mil e quinhentos euros por mês. Mas divididos por quatro, fica a seiscentos e vinte e cinco a cada um de nós. Proponho que se venda o andar dos pais e com o dinheiro que ele render, mais um pecúlio razoável que eles têm em Certificados de Aforro, podemos mitigar bastante o nosso esforço financeiro.
- Pela minha parte acho bem! – disse a Sofia – Além de que penso que, infelizmente, o nosso papá não deve durar muitos anos.
- Eu também concordo! – disse o Pedro depois de ver a mulher a dizer que sim com movimentos muito discretos da cabeça e dos olhos.
- Eu também! Acho que o pai não vai durar muitos anos e merece que os últimos tempos sejam passados com todo o apoio e companhia – falou a Júlia.
Entreolharam-se, e o João Paulo concluiu:
- Então eu posso tratar do assunto já amanhã.
- E o processo de habilitação de herdeiros da mãe? – perguntou a Júlia.
- Eu trato disso. Como o pai é vivo, é relativamente fácil. Quando for precisa a colaboração dos que vivem longe, eu aviso - afirmou o Pedro.
- E a questão da venda deste andar? – inquiriu a Sofia.
- Eu e o João Paulo, que vivemos aqui perto, encarregar-nos-emos de tratar das coisas e iremos dando as informações lá para baixo. Ainda não há muito tempo que eu tratei dos assuntos relativos à morte do pai da Ana Maria – disse o Pedro.
- Já estás formado no assunto. – brincou o Vítor – Se for preciso mexer influências em bancos, falem comigo.
- Certo! – anuiu o mais velho.
E mudando o tom:
- Como vêem, quando as pessoas têm inteligência e boa vontade, tudo se resolve. E afeição aos pais, também!
- E dinheiro! – rematou a Mafalda, que era considerada pelos outros como uma esquerdista contestatária.
Passado ano e meio faleceu o Albertino Simões.
Os filhos, genros, noras e alguns netos reuniram-se novamente.
Durante o período de internamento no lar só o Pedro, a Ana Maria e o João Paulo tinham visitado algumas vezes o adorado papá.
Poucas vezes!