Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Sexta-feira, 22 de Fevereiro de 2008
O planeta dos gigantes e dos anões
Gilberto nasceu e foi criado num país cheio de montanhas que no inverno se tapavam com um manto de alvíssima neve e no verão se recobriam de um tapete de pastagens verdejantes onde o gado e os pastores se deliciavam sob um sol donde dimanava um suave calor.
Lá no alto tudo era calma e as gentes viviam em paz e sossego, sem disputas nem invejas.
Mas, feito homem, decidiu deixar aquelas terras de sonho onde os habitantes eram iguais e felizes, partindo para os vales e planícies onde havia aldeias, vilas e cidades povoadas por gente diferente: uns eram gigantes e à sua passagem pisavam os outros que eram pequenos anões. Estes eram muito mais numerosos mas ficavam impotentes perante a força dos grandes que em tudo mandavam e tudo dominavam.
Gilberto não gostou do que viu!
Por isso resolveu partir para um país mais longínquo em busca de um trabalho em que fosse pago justamente e pudesse sentir-se de bem consigo e com os outros.
Mas o panorama era sempre o mesmo: os grandes dominavam os pequenos que eram vítimas de todo o tipo de actos de amesquinhamento, aviltamento e degradação.
Passou para outro país, e mais outro e mais outro em busca de uma terra de justiça e igualdade.
Mas era tudo sempre o mesmo: os liliputianos eram pouco instruídos, muitos morriam ainda crianças, eram doentes e fracos e trabalhavam para que os gigantes pudessem fazer uma vida faustosa.
Estes também morriam mas quasi sempre de velhice e, quando ocorria um passamento, os vivos iam comer o que dele restava, num festim em que cada um procurava ficar com mais do que o outro.
E Gilberto durante anos percorreu esse planeta que ele foi conhecendo cada vez melhor e onde só encontrou grandes diferenças entre os seus habitantes.
Por fim, triste e desiludido, resolveu voltar para os seus montes.
Mas qual não foi o seu espanto quando verificou que quem lá vivia agora eram também gigantes e anões.
Quinta-feira, 14 de Fevereiro de 2008
25 anos
Faz hoje 25 anos que faleceu a minha mãe.
Como o tempo passa depressa…
Hoje não é Dia dos Namorados
Vou reproduzi-lo como forma de a relembrar, homenagear e perpetuar a sua memória:
“14 de Fevereiro.
Hoje faz 24 anos que faleceu a minha mãe.
Foi numa segunda-feira de Carnaval.
Na terça-feira, ao acordar, abri a persiana e olhei pela janela.
Estava tudo coberto de neve.
Nunca mais vi assim a Maia e já cá resido há 27 anos.
Será que a natureza se vestiu de branco especialmente para se despedir da mãe Julieta?
Numa sexta-feira, recebi um telefonema do meu cunhado que na altura vivia com a minha irmã e os dois filhos em casa dos meus pais. Já tinha jantado e ele disse-me que iriam levar a minha mãe para o Hospital de Santo António, para a Urgência.
Já não se vinha sentindo muito bem e tinha muitas dores nos membros inferiores, mas a situação agravara-se.
Comentei para a minha mulher:
- É o começo do fim da minha mãe!
Premonição?
Acho que não, mas tinha a certeza que tinha razão.
Fui logo para lá. Que confusão!
Finalmente lá foi para uma enfermaria.
No sábado fui visitá-la. Falei com os médicos. Não sabiam qual a causa do mal, mas inclinavam-se para um vírus que lhe teria atacado o sistema nervoso e provocado uma paralisia flácida ascendente.
No domingo foi o baptizado do meu filho. Não houve qualquer festa, naturalmente. A minha mãe tinha mandado fazer um vestido novo para usar nesse dia. Não o usou nesse dia mas foi o que escolhemos para lhe servir de mortalha.
Foi a última vez que a vi consciente.
Na 2ª feira de manhã, por voltas das onze horas, telefonou a minha irmã que, por razões profissionais se mexia bem naquele Hospital, a dizer:
- A mamã está em coma nos Cuidados Intensivos.
O horário de visita era só de meia hora e não mais de duas pessoas de cada vez.
Mas a situação agravava-se dia a dia. A causa da doença continuava mal definida. A temperatura do corpo era de 35º centígrados.
No sábado, um médico disse-me que a mãe Julieta já estava num estado de morte cerebral, irreversível.
A segunda-feira de Carnaval foi o dia oficial da morte pois foi quando desligaram as máquinas que a mantinham aparentemente com um sopro de vida. Mas era só aparentemente.
A autópsia, que não foi conclusiva, e o funeral realizaram-se na quarta-feira de cinzas.
Foi sepultada no jazigo da família em Vila Praia de Âncora. Tinha 66 anos.
Dez anos depois o meu pai foi-lhe fazer companhia.
Foi em 1983.
Faz hoje 24 anos!
Mas parece que foi ontem!
Escrevi tudo isto de rajada e não verti uma lágrima.
Acho que as gastei todas esta manhã.”
Sábado, 9 de Fevereiro de 2008
Histórias curtas XXXVIII - O bajulador
Reconversão do texto “Diálogos de gente (IX) – O lambe-botas” de 25 de Abril de 2006
Duarte Nóvoa estava sentado na secretária do seu gabinete a escrever um e-mail de resposta a uma questão suscitada pelo seu superior hierárquico e Director – Geral.
Eis que o seu subordinado Óscar Ribeiro assomou à porta do compartimento e perguntou baixinho:
- O Sr. engenheiro dá licença?
O chefe nem teve de levantar a cabeça para saber quem era:
- Ó Óscar! Eu agora preciso de estar concentrado aqui a redigir um texto para o meu chefe. Falamos daqui a um bocadinho.
- Sim, Sr. engenheiro Nóvoa – respondeu o Ribeiro, ao mesmo tempo que entrava completamente no gabinete e se postava silenciosamente junto à porta.
Ao fim de uns bons dez minutos:
- Ufa! Finalmente! – suspirou o Duarte e, reparando no outro – Então você ainda está aí, Ribeiro?
- Estava à espera que o Sr. engenheiro acabasse esse trabalho para falar consigo.
- Já lhe disse para não me chamar Sr. engenheiro. Não gosto. Pode chamar-me engenheiro Nóvoa se quiser usar o título, mas sabe muito bem que não gosto muito disso. O meu nome é Duarte Nóvoa – repreendeu o “manda-chuva”.
- Pois é! Mas estou habituado a meter sempre o engenheiro e agora, se não usar, não me sinto bem – justificou-se o Óscar.
- Mas afinal qual é o problema, Ribeiro? – interrogou o Nóvoa.
- Queria pedir-lhe autorização para logo à tarde me deixar sair. Tenho uma consulta marcada no oftalmologista às quatro horas. Mas eu ainda venho cá depois porque o Sr. engenheiro Nóvoa pode precisar de mim – disse o homem.
- Está muito bem! É sensato olhar pela saúde e a visão deve ser bem vigiada – autorizou o engenheiro.
E continuou:
- E está dispensado para o resto da tarde. Você passa cá muito tempo e até lhe faz bem ir apanhar ar fresco. Senão ainda fica mais doente estando sempre aqui metido.
- Muito obrigado, Sr. engenheiro! – agradeceu o Óscar – Mas eu gosto de estar aqui porque acho que devo dar o máximo de tempo à empresa que me paga.
- Eu agradeço muito a sua dedicação, Ribeiro, mas não quero que prejudique a sua vida privada e familiar. Salvo em situações excepcionais – disse o chefe.
- Sabe que, se eu não estou, muitas das outras pessoas que cá trabalham não sentem tanto a firma e alguns assuntos ficam adiados. Eu procuro resolver tudo de imediato.
- Eu sei da sua dedicação, Ribeiro! Não precisa de ma lembrar. – afirmou o Nóvoa, já um pouco fatigado dos salamaleques e auto-elogios do outro – Pode retirar-se e, se me fizer o favor, peça ao Nogueira para cá vir.
- Acho que o Nogueira não está cá! Mas eu vou procurá-lo e se estiver eu dou-lhe o recado – prontificou-se o lambe – botas.
- O Nogueira não está cá? Mas ninguém me disse nada! – admirou-se o Duarte.
- Eu não tenho a certeza, mas vou já tratar disso. Com licença! – e saiu da sala, o Ribeiro.
- Até que enfim! Este tipo é pior que uma carraça! – desabafou para consigo o Director do Departamento.
Passados alguns minutos, apareceu novamente o Óscar.
- O Sr. engenheiro dá licença? – perguntou.
- Diga lá, Ribeiro!
- Estive a procurar o meu colega Nogueira mas não o encontrei.
- Mas ele saiu e não disse nada? – perguntou, um pouco irritado, o responsável.
- Parece que saiu e não disse nada a ninguém – enfatizou o graxista.
- Isto assim não pode ser!
Mas eis que surgiu à porta um terceiro homem!
- O engenheiro andava à minha procura?
- Ó Nogueira! Afinal você está cá!
- Estive sempre! Mas de vez em quando tenho umas necessidades fisiológicas para satisfazer – disse o recém-chegado enquanto olhava com cara de poucos amigos para o Ribeiro.
- Entre e sente-se! E você, Ribeiro, pode retirar-se. Já não preciso de si, por enquanto – ordenou o Director.
- Então, com a sua licença, Sr. engenheiro!
E o Óscar Ribeiro saiu, a pensar:
- Este sacana vai ter de me dar um bom aumento! Nem que tenha de passar cá dentro 24 horas sobre 24 horas.
E os dias, as semanas, os meses foram correndo e o sabujo continuava a irritar tudo e todos.
Tal era a ânsia de exibir a sua dedicação e entrega à firma que nem percebia quão ridículo se tornava, mesmo aos olhos daqueles que mais bajulava.
Um dia, um grupo de colegas que não o suportava resolveu agir e encarregou o Jorge França, que era um excelente imitador, de telefonar para casa do Ribeiro cerca das três da madrugada simulando ser o engenheiro Duarte Nóvoa.
E ele assim fez:
- Ó Ribeiro! Desculpe estar a incomodá-lo a esta hora mas eu estou aqui na empresa porque se declarou um princípio de incêndio. Um segurança do prédio chamou os bombeiros que apagaram o fogo mas alagaram tudo e estragaram imensas coisas. Você não se importa de dar aqui um salto para ajudar a fazer umas arrumações? De manhã dormimos e vem outros e nós continuamos de tarde…uma espécie de turnos.
- Vou já, Sr. engenheiro Nóvoa! É só o tempo de me vestir e fazer a viagem. Acho que estou aí em vinte minutos.
- Obrigado, Ribeiro! Eu sabia que podia contar consigo. Depois será devidamente compensado – prometeu o chefe.
- Então até já!
Claro que quando o homem, um quarentão baixo, calvo e anafado chegou ao seu destino estava tudo na maior das calmarias.
Falou com o segurança que lhe garantiu que nessa noite nada de anormal se passara e muito menos tinham lá estado os bombeiros.
Afastou-se em direcção à sua viatura enquanto cogitava:
- O engenheiro era incapaz de me fazer uma coisa destas; mas a voz era a dele…ah…só pode ter sido o sacana do França. Maldito! Mas o chefe vai ficar a saber disto! Claro que vai!
No dia seguinte o Óscar Ribeiro chegou ao serviço à hora habitual mas um tanto ensonado. Todavia, não deixou de reparar que era alvo de olhares trocistas, facto que o deixou deveras irritado.
Ao passar pelo França murmurou:
- Vais-te arrepender do que fizeste!
E dirigiu-se ao gabinete do engenheiro Duarte Nóvoa.
- Posso entrar, Sr. engenheiro Nóvoa?
- Entre, Ribeiro, entre! Eu queria mesmo falar consigo.
- Mas antes, e se me autorizasse, queria contar-lhe o que me fizeram esta madrugada e provocou que hoje esteja com um ar menos agradável.
E contou tudo o que ocorrera…
O chefe olhava para ele muito atentamente e com um ar muito sério.
Quando o Óscar Ribeiro terminou a narrativa o engenheiro falou:
- Ó Ribeiro! Olhe que não foi o França. Fui mesmo eu…
O outro ficou a olhar para o Director de Departamento com cara de parvo e, ao fim de uns segundos, perguntou:
- Mas como pode ter sido o Sr. engenheiro?
- Nem você nem ninguém nesta casa sabe que eu sou sonâmbulo. Como a minha mulher me acordou de noite quando eu acabava de fazer um telefonema, embora não me lembrasse de nada, ela foi ver que número eu marcara e era o seu. Ainda tentei comunicar consigo mas você já saíra e não deve ter levado o telemóvel. Pensei em deixar uma mensagem de voz mas achei que o melhor seria depois falar consigo pessoalmente. Peço-lhe desculpa pelo inconveniente! – falou o Nóvoa.
- Por quem é, Sr. engenheiro? São coisas que acontecem. Felizmente não houve incêndio nem nenhuma confusão grave. Esse problema que o Sr. engenheiro tem é que é muito chato – disse o graxista.
- É! Mas felizmente só me dá muito raramente. Tomo umas pastilhas para evitar fazer disparates a dormir.
E pouco depois o Óscar Ribeiro saiu do gabinete.
Continuou a parecer-lhe que muitos dos colegas tinham um ar zombeteiro, mas pensou:
- Não acredito que o engenheiro estivesse mancomunado com esta corja!
E armou a couraça da indiferença.
Segunda-feira, 4 de Fevereiro de 2008
Histórias curtas XXXVII - Infidelidades
Reconversão do texto “Diálogos de gente VII – O corno” de 16 de Abril de 2006
Sábado à tarde.
O cinquentão Augusto Simões, professor de História, sabendo que a sua mulher Maria de Fátima, também docente da mesma disciplina mas noutra escola, tinha um compromisso no exterior com umas amigas, chamara a sua casa e esperava a chegada do seu irmão mais novo.
Serafim tinha menos dez anos do que ele.
A mulher tinha menos quinze anos. Ainda não fizera quarenta.
Quando o mano chegou, Augusto, muito circunspecto, disse-lhe:
- Ó Serafim! Preciso de alguém para desabafar.
- Sou todo ouvidos! – incitou o outro.
- Sabes que gosto muito da Fati, mas descobri que ela me trai.
Fez uma pausa.
O irmão fitava-o fixamente e com o rosto fechado, mas não dizia nada.
Por isso, continuou:
- Eu já há uns tempos que andava desconfiado. Todas, ou quasi todas as tardes de quarta-feira me dizia que ía até à baixa ver se havia alguma coisa interessante para comprar e encontrar-se com umas amigas. E aos sábados a mesma coisa. Mas, nesse dia, algumas vezes eu acompanhava-a. Até que resolvi segui-la na última quarta.
- Oh pá! – exclamou o outro.
- Deixa-me acabar! – pediu o Augusto e prosseguiu – Vi-a entrar para uma hospedaria. Passado pouco tempo entrou um tipo cuja cara me era familiar. Um colega dela, lá na escola. Ao fim de quasi duas horas a minha mulher saiu e pouco depois ele fez o mesmo. Cada um seguiu o seu caminho e ela regressou a casa.
- Desculpa-me interromper-te! – disse o Serafim – Mas porque desconfiaste?
- Sabes que ultimamente a tenho procurado pouco! – disse o Gusto – Ando com muito trabalho, os anos vão pesando e quando chegam as onze ou onze e meia vou para a cama e adormeço como uma pedra. Dantes, ela ainda me espicaçava e eu correspondia algumas vezes. Outras, dizia que queria dormir e descansar. Actualmente, nem eu nem ela. Não temos relações há algum tempo.
- Estou espantado! E agora? – perguntou o irmão.
- Agora? – e fez uma pausa, de cabeça baixa, o Augusto – Eu ainda gosto muito da Fati e não sei bem o que fazer. Digo-lhe o que sei ou não? Provavelmente não digo nada e vou tentar reatar uma actividade sexual mais frequente. Para isso preciso de trabalhar menos e descansar um pouco mais. Ela é nova e ainda com muito sangue na guelra. Pensei dizer-lhe tudo, mas o mais certo é perdê-la para sempre. Pode ser que, não falando em nada, a reconquiste. Como não falta muito para as férias vou propor-lhe fazermos uma viagem interessante, ao estrangeiro. Tentar que ela se afaste dele. E às quartas à tarde vou arranjar pretexto, pelo menos algumas vezes, para a acompanhar.
- Sabes se ele é casado? – quis saber o mano mais novo.
- Penso que sim.
- Podias contactar a mulher dele e contar-lhe. Assim seriam dois a ajudar ao fim da relação – sugeriu o Serafim.
- É uma ideia. Nem me tinha lembrado disso – retorquiu o enganado.
E continuou:
- Vou pensar melhor nessa hipótese, mas primeiro vou tentar o que te disse. Que achas?
- Se não lhe queres dizer nada é porque não estás interessado na separação. Portanto, e considerando que queres salvar o casamento, acho que a tua ideia parece ser boa. Mas não sei se o que há entre eles é meramente carnal ou é mais do que isso. Se ele for casado e também não quiser acabar com o casamento, talvez resulte. Embora a ajuda da mulher dele pudesse ser preciosa – alvitrou o Serafim.
- O pior é se ela resolve querer separar-se dele; assim fica o caminho aberto para a Fati e o gajo – lembrou o marido.
- Tens razão! Sabes que é muito difícil dar conselhos em situações destas, especialmente quando não se conhece as pessoas todas e um conjunto de detalhes. Não sei bem o que te diga! – confessou o irmão.
- Eu compreendo-te! Mas quis dizer-te isto para desabafar e para que tu estivesses ao corrente da situação. Pode ser que possas ajudar. Se não for hoje, noutras ocasiões. – disse o Augusto – Sabes que já me sinto mais desanuviado?
- Eu gosto muito de ti, mano. Na medida das minhas possibilidades, tentarei ajudar-te a reconquistar a tua mulher e a afastar o outro.
Com os olhos brilhantes, Augusto levantou-se e foi dar um beijo ao irmão.
- Eu sei que posso contar contigo. Mas o papel principal tem de ser meu.
Conversaram ainda algum tempo sobre este e outros assuntos.
Por fim, o mais novo despediu-se e saiu.
E foi pensando consigo mesmo:
- Então o meu irmão é corno! E corno manso! Mas isso é o que mais há! Como se costuma dizer: um homem sem cornos é como um jardim sem flores. Oxalá consiga atingir o objectivo de reconquistar a mulher. Ele gosta mesmo dela. Mas duvido que ela o mereça!
Finalmente, e após mais uns dias de investigação e meditação, o Augusto descobriu que a mulher do amante da Fati era professora na mesma escola onde ele leccionava e decidiu arriscar e ir falar com a colega Judite. Ela era uma professora de Português de uns quarenta e cinco anos, mais coisa menos coisa, que parecia ser a idade do marido, o professor de Matemática, Jaime Pereira.
Optou por a visitar em casa numa das quartas-feiras em que o marido saía, alegadamente para ir dar umas explicações a casa de dois irmãos.
Receosamente tocou à campainha. Veio à porta uma bonita moça dos seus vinte anos.
- Pretendia falar com a Sr.ª Dr.ª Judite Pereira – disse.
- E quem devo anunciar?
- Augusto Simões, colega na escola.
- Um momento, por favor.
Pouco depois apareceu uma mulher muito elegante e, se não era uma beldade, tinha um ar sensual e apelativo.
- Desculpa aparecer assim, mas trata-se de um assunto muito sério e precisava de falar consigo a sós – sussurrou.
- Mas está aqui a minha filha! – falou também baixo a professora, como que influenciada pelo homem – Vamos ali ao café?
- Está bem!
- Olguinha! – gritou – Vou ali ao café falar com este colega e volto breve.
- Até já! – respondeu a moça.
Uma vez acomodados e depois de ela ter pedido um café e ele um descafeinado, o Augusto contou tudo o que sabia sobre os respectivos cônjuges.
A Judite ouviu-o atentamente mas parecia esboçar um ligeiro sorriso em vez de fechar o rosto ou soltar exclamações de admiração.
Por fim, ela falou:
- Eu já sabia isso tudo! O que tu fizeste já eu fizera também. Mas não sabia que atitude tomar e fui deixando a coisa correr.
Quem mostrava uma cara de espanto era o professor.
Mas ela continuou:
- Enquanto falavas, ocorreu-me uma ideia que é bastante perversa mas que acaba por se encaixar no adágio “amor com amor se paga” só que neste caso seria “cornos com cornos se pagam”.
- Mas…
- Exactamente! Tu parece que andas a seco e eu a seco ando. Tu parece não quereres destruir o teu casamento e eu, pelo menos para já e por razões um tanto complicadas e que não vem ao caso, também não. Portanto, enquanto eles se consolam, nós também nos consolamos e ao mesmo tempo vingamo-nos…
- Agora até me deixaste um tanto zonzo…
- Acredito! Já andava a pensar em o trair mas não sabia como: tu és o tipo ideal. Para que saibas, até tenho um fraco por ti…
- Confesso que também te acho uma mulher muito interessante... – descaiu-se o Augusto.
- Então começaremos por ir ver uma sessão de cinema no sábado à tarde e depois deixamos as coisas correrem normalmente. Dá-me o teu número do telemóvel e toma nota do meu.
Feita a permuta…
- Tu surpreendes-me com a capacidade de agir de forma tão fria e calculista. – deixou escapar o homem – Não gostas do Jaime?
- Gosto! Mas os meus sentimentos arrefeceram muito depois de ter descoberto a traição. Juro-te que não estou apaixonada.
- Eu também não! Mas ainda gosto muito da Fátima e tudo isto me tem custado imenso – confessou o Augusto.
E continuaram a conversar até acharem que era tempo de irem cada um á sua vida.
Conheciam-se mal mas, a hora e meia de conversa tão íntima e tão cúmplice, pareceu fazer nascer entre ambos uma estranha atracção.
E começaram rapidamente a ter encontros íntimos exactamente nas mesmas ocasiões em que a Fátima e o Jaime estavam juntos.
Iam para uma residencial num local bastante distante daquela onde o outro par se encontrava.
Até que, passados uns três meses, e quando o Augusto já nutria um importante afecto pela Judite, ela propôs:
- Da próxima vamos à “Rainha de espadas”. Certo?
- Onde eles se encontram? A que propósito? – inquiriu ele.
- Ora! É altura de saberem que nós estamos a par de tudo e que eles também são cornudos – falou ela com a frieza habitual.
- Achas boa ideia? Parece-me que vai perturbar a paz reinante – disse o Gusto em tom que deixava transparecer desacordo.
- Pois eu acho que é altura de definir as coisas: ou cada um volta para o seu parceiro, ou divorciamo-nos e eles fazem como quiserem e nós passamos a viver na mesma casa ou, no mínimo, a assumir publicamente a relação e a dormir juntos. Esta situação não se pode eternizar! – avançou, decidida, a mulher.
- Dá-me uns dias para meditar no assunto, sim?
- Ok! Uma semana? – sugeriu ela.
- Sim! Penso que é suficiente – anuiu ele.
E ao fim dos sete dias ele apareceu com a resposta:
- Acho que tens toda a razão! É tempo de decisões mais definitivas.
E quatro dias depois foram para a ”Rainha de espadas” e sentaram-se num sofá junto à porta mas pouco visível para quem entrasse na residencial.
Não tardou muito que aparecesse a Fátima.
Quando os viu sentiu um calafrio e ficou especada, mas a Judite disse-lhe:
- Pode estar calma! Não vamos para o vosso quarto.
Levantou-se, aproximou-se dela e continuou:
- Devo dizer-lhe que o vosso segredo já não o é há muito tempo. O que vocês não sabiam era que eu e o seu homem andávamos enrolados…
Neste momento entrou o Jaime que ficou parado junto da porta ao ver as duas mulheres. O seu primeiro pensamento foi fugir, mas conteve-se.
O Augusto levantou-se então e sugeriu:
- Vamos para os nossos quartos! – e acrescentou – Eu vou com a Judite, obviamente. E depois podemos ir jantar juntos e conversar.
- Penso que temos de conversar mas não hoje! – falou o recém-chegado, ainda sem perceber exactamente o que se passara – Primeiro quero falar com a Judite e com a Fátima.
- Muito bem! Eu também quero falar com elas. Portanto agora vamos ao amor e depois combinamos um jantar a quatro, se assim entenderem – falou, com uma frieza que o tornava irreconhecível, o Augusto.
- Então até mais ver! Vamos para cima! – e a Judite começou a pisar os degraus um a um.
O amante seguiu-a, como sempre, e os outros, bem conhecidos da funcionária da recepção, ficaram a olhar um para o outro com cara de basbaques enquanto a rapariga exibia um sorriso mordaz.
- Bom! Subimos, meu amor? – convidou a mulher.
Ele hesitou e respondeu:
- Sim! Mas tens de me explicar o que se passou.
-Sim, meu querido! Mas parece que brevemente vamos estar juntos muito mais tempo do que agora.
Deram-se as mãos e subiram também as escadas, dirigindo-se para um dos quartos onde tantas vezes se tinham amado.