Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Reconversão do texto “Diálogos de gente (XVII) (Homo)” de 3 de Setembro de 2006
Bruno Gouveia, o Becas, era um tipo de trinta e poucos anos.
Solteiro, alto, elegante, sempre impecavelmente vestido, cabelo liso e relativamente comprido que afastava da frente dos olhos com os dedos ou com um trejeito adequado da cabeça. Caminhava sempre muito hirto, com um passo de desfile em “passerelle” e todos os movimentos que fazia eram como que meticulosamente ensaiados diante do espelho. Eram notórios alguns tiques afeminados. A voz era grave, mas o modo de falar era algo afectado e carregava nos erres. Tinha um emprego estável e razoavelmente remunerado.
Não tinha muitos amigos nem amigas. Íntimos, ainda menos, e não se lhe conheciam amantes nem namoradas.
Vivia com a sua mãe Lucrécia, há muito viúva do Gouveia que só lhe dera aquele filho e que ela educara com todo o desvelo e carinho.
Poucas vezes saía de casa sozinho, salvo para ir ao café mais perto e, mesmo lá, geralmente ía com a mamã.
As más-línguas diziam que ele era maricas ou, algumas mais viperinas, cochichavam mesmo que haveria uma relação incestuosa na casa, tal o número de vezes que mãe e filho saíam juntos e o tempo que ele passava dentro da habitação.
Certo dia, recebeu um telefonema de uma colega de trabalho, que vivia perto dele e com quem se encontrava algumas vezes no tal café, que lhe propôs irem almoçar fora no sábado seguinte.
Já por várias vezes que a Cátia Gomes, interessante mulher que andava perto dos trinta anos, lhe havia feito aquele convite. Ele recusara sempre.
Mas desta vez ela conseguiu convencê-lo.
E assim, não sem antes ouvir as habituais recomendações maternas, saiu de casa conduzindo o seu carro, sempre muito limpo, para se encontrar com a colega no restaurante combinado.
Lá chegado, não teve que esperar muito para que visse a Cátia sair da viatura com um provocante vestido branco, curto e semi-transparente.
Durante a refeição, que foi frugal pois ambos queriam manter uma boa silhueta, conversaram sobre vários assuntos, inclusivamente de trabalho mas, no final, ela propôs irem num dos automóveis para um sítio fresco já que o calor apertava.
E nada melhor, mesmo sendo noite, que sob um arvoredo denso que recobria um conhecido monte nos arredores da cidade. Um daqueles locais muito frequentado por namorados e também pelos famosos “pestaninhas” ou “espreitinhas”.
A jovem insistiu para irem no carro dela.
Assim, estacionou exactamente onde quis.
- Bruno! Tu és um homem muito bonito. Mas acho que não tens namorada. É verdade? – perguntou a rapariga.
- É! – respondeu ele, laconicamente.
- Que desperdício! E nunca tiveste? – insistiu ela.
- Ó Cátia! Onde é que tu queres chegar? – interrogou o Becas.
- Queres que te diga? Eu digo-te! – disse ela convictamente, enquanto se colocava numa posição em que ele pudesse ver bem as suas coxas descobertas e uma boa parte dos roliços seios destapados.
E prosseguiu:
- Não sei se sabes, mas tu tens fama de ser maricas! Ora eu acho que tu não és nada disso. Acho que és muito tímido, que tens pouca experiência com mulheres e tens um certo receio de te aproximar. Tenho razão, não tenho?
E começou a passar-lhe os dedos suavemente pelas pernas com a óbvia intenção de o excitar.
O homem manteve-se impassível e respondeu:
- De facto, nunca me senti muito atraído por mulheres. Por isso nunca namorei a sério. Tive uns namoricos quando era mais novo mas ao fim de pouco tempo acabava com eles pois não me interessava aprofundar nenhuma relação.
Ela começou a acariciar-lhe a zona entre pernas mas, contudo, o falo continuava sem fala.
- Então não gostas mesmo de mulheres! – disse ela – Mas podes estar descansado que o que dissermos aqui dentro será um segredo só nosso.
E continuou:
- E por homens? Sentes atracção? Olha! Vou ser totalmente directa: és homossexual?
O Bruno Gouveia desviou os olhos e fitou o infinito.
Só ao fim de uns dois ou três minutos olhou para a Cátia que tinha ficado positivamente suspensa.
- Sou homossexual! – confessou o Becas, enquanto os seus olhos brilhantes de água olhavam para a companheira.
- Podes estar descansado que eu não digo nada a ninguém – repetiu a jovem mulher – e se quiseres desabafar comigo está à vontade. Acho que deves ter muita coisa dentro de ti que gostarias de deitar cá para fora e não consegues porque não ousas assumir-te.
Cátia deixara de provocar o homem e agora pegava-lhe numa mão que acariciava maternalmente.
- Nem imaginas! Nem imaginas! Não sabes o que é ter a obrigação social de gostar de mulheres quando elas não me excitam. – e prosseguiu, num imenso desabafo – Eu gosto muito de um tipo da minha idade que me corresponde. Mas o pior de tudo é que ele é bi, casado e com um filho. Encontramo-nos uma ou duas vezes por mês e falamos na Net ou ao telefone, embora não com a frequência que eu desejaria.
Cátia sentiu que não devia ser demasiado curiosa, mas não desistiu da insistência: - Se assumisses a tua homossexualidade não seria melhor?
- Já pensei nisso muitas vezes! Mas acho que não! Tenho quasi a certeza que seria muito pior para mim. Além de ti, da minha mãe, e de alguns homens com quem tive relações, mais ninguém sabe. Rogo-te que guardes isto que agora te disse e nunca o reveles a ninguém – pediu o homem.
- Olha, Bruno! Devo dizer-te que a partir deste momento sinto um afecto e uma ternura por ti como nunca senti antes. Respeito totalmente a tua opção sexual e, sempre que quiseres desabafar ou uma companhia feminina para calar as bocas, conta comigo – ofereceu-se a amiga.
- Agradeço imenso! E provavelmente vou aproveitar a tua oferta. Só te quero dizer que não se trata de uma opção. Eu não sou homo por opção mas porque nasci assim e nada disto depende da minha vontade – disse o jovem e começou a chorar.
Ela sentiu os olhos humedecidos. Apertou a mão dele com força e disse-lhe o que lhe pareceu mais oportuno:
- Bruno! Tu ainda vais ser feliz!
- Duvido muito, Cátia, duvido muito! Se tivesse coragem de fugir, ir para longe, para um lugar onde ninguém me conhecesse, talvez. Mas enquanto tiver de guardar tudo isto dentro de mim, nunca serei feliz. Limito-me a ter alguns momentos, poucos, de felicidade.
O tempo foi passando e, cerca de dois anos depois, a mamã Lucrécia faleceu.
O filho teve de se adaptar a uma vida de solitário mas, para ultrapassar essa situação, começou a sair à noite para frequentar bares gay.
Aí conheceu o José Gomes: um tipo um pouco mais novo, bela figura, mas mandrião e pouco recatado.
Até que uma noite o Bruno o convidou a ir a casa beber mais um copo.
E a noite virou uma sessão de sexo desvairado!
E os encontros foram-se repetindo até que o Zé se instalou de armas e bagagens no apartamento do amante.
Nessa altura já a vizinhança falava deles à boca cheia como um casal de pouca vergonha.
Uma vez, no emprego, a Cátia falou para o colega:
- Ó Bruno! Tem cuidado! A tua relação como teu namorado anda a ser muito falada e, segundo sei, ele não é boa rês.
- Eu sei, minha querida! Mas tenho de me vingar de todos os anos em que vivi oprimido.
- Mas tem cuidado, está bem? Sabes que gosto de ti e não te queria ver doente, prejudicado ou aldrabado pelo teu homem.
- Agradeço o teu cuidado, Cátia, mas não te preocupes…
- E acautela-te com o teu lugar na empresa! Tens andado um pouco desleixado com o trabalho e sabes como são as pessoas – informou a mulher.
- Eu sei! Mas esta fase vai passar e depois tudo será mais calmo.
E continuou o Becas:
- Sabes que estamos a pensar casar em Espanha? E depois, quando for possível, tentaremos adoptar uma criança.
- Sim? – disse ela, laconicamente.
- Acho que estou perto de conseguir concretizar os sonhos da minha vida.
- Se ficas contente, eu fico satisfeita também! Mas cuida-te! E agora vamos trabalhar…
Um dia, passados cerca de três meses, o Becas faltou ao trabalho sem avisar. Coisa rara.
A Cátia apercebeu-se e ligou para casa dele:
- Olá, Bruno! Estás doente?
Do outro lado ouviu um silêncio durante vários segundos que a deixaram a pensar que alguma coisa não estaria bem.
- Bruno! Estás aí?
Desta vez o rapaz falou:
- Sim, Cátia! Quero falar contigo. Preciso muito de falar contigo.
- Então vou já para aí – disse a rapariga, e desligou.
Depois arranjou uma desculpa, saiu da empresa e foi até casa do amigo.
Quando o colega a encarou à entrada da porta agarrou-se a ela a chorar convulsivamente.
- Que aconteceu, Bruno? – inquiriu ela quando sentiu que o homem estava em condições de falar.
- O Zé está doente com sida e eu fui fazer o teste e sou seropositivo.