Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Quinta-feira, 30 de Julho de 2009
A Luanda que eu conheci (parte II)

O clima de Luanda era pouco aprazível.

Havia duas estações: a das chuvas ou verão, com o sol sempre aberto, mais quente e mais húmida, que durava de Setembro a Maio, e a do cacimbo, em que o calor era menos intenso e decorria em Junho, Julho e Agosto.
Como curiosidade direi que mais tarde, quando tinha já aquele que foi o meu primeiro automóvel, um velho Fiat 500 descapotável que, tendo a cobertura rasgada me fazia deixá-la sempre aberta, e porque a estação das chuvas se caracterizava também por repentinos e fortíssimos aguaceiros, quando andava no passeio com o meu bólido e a água começava a cair, torrencial, só tinha uma solução: parar o carro e ir abrigar-me numa loja ou outro sítio coberto. Passada a chuvada que, normalmente, não demorava mais de quatro ou cinco minutos, voltava à carripana. Como logo o sol refulgia intensamente e o chão da viatura tinha um furo para escoar a água, em menos de três minutos podia sentar-me ao volante e continuar o meu caminho.
 
Fui-me apercebendo, também, que não havia racismo digno desse nome. A segregação era essencialmente económica.
Um caso curioso e que atesta bem a forma de sentir e pensar dos nativos foi-me contado da seguinte forma: um operário negro (que eu cheguei a conhecer), especializado, já de meia-idade e que trabalhava na reparação dos navios, vivia num musseque. Como ganhava razoavelmente, foi convencido pela gente da Armada e alugar um apartamento na zona de betão. Ele assim fez mas, ao fim de poucos meses saiu e regressou ao sítio onde estavam as suas origens e se sentia bem: o musseque.
Também me membro perfeitamente de ter visto pretos e branco a laborar juntos em obras de construção civil e outros trabalhos, e até a serem os mais escuros a darem ordens aos claros.
 
Mas, na manhã do dia 25 de Abril de 1974, estava eu em Luanda há cerca de dois meses e meio, soube-se que o Estado Novo, na versão Marcello Caetano, tinha sido derrubado. Tudo começou a mudar: ao princípio lentamente mas em 1975 os acontecimentos iriam precipitar-se de forma dramática.
Entretanto o navio começou a navegar e fizemos os monótonos cruzeiros (assim chamávamos às missões no oceano) ao norte, até Cabinda ou ao Zaire, nos quais o mar de vaga morta propiciava um certo mal-estar físico, embora eu nunca tivesse enjoado, e os interessantíssimos cruzeiros ao sul, com paragem habitual em Porto Amboim, Lobito, Moçâmedes e Porto Alexandre.
No início de Julho fomos para S. Tomé e quando regressamos, em meados de Setembro, já o comandante do navio não era o Silva Dias que voltara ao continente com a sua mulher francesa, a bela Jacqueline, terminada que fora a sua comissão de serviço, mas sim o 1º tenente Nunes Ferreira, tipo bastante mais simples e modesto que o seu antecessor.
Diga-se que sempre tive boas relações com ambos e também com o imediato Ribeiro e Castro.
De novo em Luanda, cada vez tentávamos acompanhar melhor o desenrolar dos acontecimentos na Metrópole, nomeadamente pela leitura dos jornais “A Província de Angola” e “O Diário de Luanda”, mais o primeiro, e do semanário “Expresso” que ia do continente.
Mas a situação nas colónias, nomeadamente em Angola, também era alvo das nossas atenções.
As autoridades de Lisboa, ocupadas com os imensos problemas gerados pela revolução que se desenrolava no Portugal europeu, iam menosprezando o que se passava nas colónias, mau grado os avisos do então major Pezarat Correia, o coordenador do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Angola. O Eng.º Santos e Castro e o Secretário-Geral do Governo de Angola, o militar Soares Carneiro, que viria a ser candidato a presidente da República portuguesa em 1980, saíram em Maio, sendo a posição de topo ocupada por Franco Pinheiro, também militar do Exército. Em Junho foi nomeado para o posto máximo na colónia o general Silvino Silvério Marques que mal aqueceu o lugar pois estava em notória oposição com o MFA. Em Julho foi colocado no topo da pirâmide o Almirante Rosa Coutinho que ficou até Janeiro de 1975, altura dos acordos do Alvor que, supostamente, teriam gerado um clima de entendimento entre os três movimentos de libertação.
O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), enfraquecido pela guerra e pelas divisões causadas por Daniel Chipenda (revolta de Leste) e Mário Pinto de Andrade (revolta activa, facção intelectual, não armada), continuava a ser liderado pelo Dr. Agostinho Neto (médico, casado com uma branca de nome Vitória) e era considerado por muitos como sendo o que tinha melhores quadros, apesar da sua ideologia pro-comunista. Rosa Coutinho encarregou-se de dar uma preciosa ajuda para a sua reabilitação. Curiosamente, o dia 4 de Fevereiro de 1961 (exactamente treze anos antes de eu ter voado para Luanda) era, e é, considerada a data oficial do início da luta de guerrilha pois assinala a primeira acção armada, levada a cabo precisamente pelo MPLA.
A Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), descendente da União dos Povos de Angola (UPA) que tinha iniciado uma vaga de massacres no norte da colónia em 1961 a qual motivara o envio massivo de tropas para Angola, era liderada por um indivíduo que mal falava português, Holden Roberto, e parecia não ter uma ideologia bem definida, mas caracterizava-se por ser, acima de tudo, um grupo militar.
A União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), chefiado por um hábil político chamado Jonas Malheiro Savimbi (dissidente da FNLA), parece ter surgido na luta em 1966 por inspiração das autoridades lusitanas e com o objectivo secreto de combater o MPLA.
Enquanto se iam formando e derrubando governos e iam decorrendo negociações e mais negociações, os homens dos movimentos de libertação, fortemente armados, foram ocupando zonas no território angolano perante a passividade da soldadesca portuguesa para quem o 25 de Abril significava, acima de tudo, o fim da guerra. Este facto foi, na minha opinião, a razão porque a descolonização não poderia ter sido feita de modo muito diferente. Um lado estava armado e o outro, na prática, desarmado.
Em Luanda, a população branca, que manifestava a intenção de não abandonar o território, ia-se alinhando de forma mais ou menos explicita com os movimentos de libertação: os mais ricos com a FNLA, a média burguesia mais direitista com a UNITA, a gente de esquerda com o MPLA.
Sobretudo depois dos acordos do Alvor e de o general da Força Aérea Silva Cardoso ter assumido as funções de alto-comissário, grupos armados dos três grupos que reivindicavam cada um para si os maiores contributos para a independência, cuja declaração já estava aprazada para o dia 11 de Novembro de 1975, infiltraram-se na cidade e foram abrindo delegações, especialmente nos musseques.
E foi aí que, aos poucos mas de forma imparável, começou a guerra civil.
As populações negras, de várias etnias, viram-se forçadas a deixar Luanda pois a situação activou, de forma notória, os ódios tribais. Como a etnia predominante na zona eram os quimbundos, aos quais o MPLA estava umbilicalmente ligado, os apoiantes deste movimento eram os que iam ficando na cidade. Lembro-me de ter ido, numa altura em que os navios já não faziam patrulhas, como navegador de um navio mercante comandado por um oficial da Armada levar centenas de pessoas, das etnias do norte, em fuga para Santo António do Zaire. Até uma criança nasceu a bordo durante a viagem.
As populações brancas, que não foram molestadas, salvo casos pontuais, viram-se envolvidas pelo fogo cruzado dos tiroteios que, muitas vezes, saíam dos bairros negros e vinham para o asfalto. E o pânico apossou-se da maior parte das pessoas que decidiram abandonar Luanda, procurando fugir para Portugal Continental, mas também para o Brasil e para a África do Sul que, ao tempo, ainda vivia em regime de apartheid.
Foi o tempo dos caixotes de madeira contendo os bens que era possível tentar transportar e da gigantesca ponte aérea. E as lutas e o pânico foram-se estendendo a todo o território angolano.                


publicado por António às 22:08
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De leonoreta a 3 de Agosto de 2009 às 09:36
ola antonio
nem sempre vivemos os acontecimentos tendo consciencia das suas causas e dos seus efeitos. pelo teu relato parece teres conhecimento dos factos historicos.
que lê, mesmo sem "pescar" do assunto como eu, fica elucidado.
beijinhos


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