Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Quinta-feira, 30 de Agosto de 2007
Histórias curtas XXIX - Num outro mundo
Tarde chuvosa no cemitério.
O carro fúnebre parou junto da sepultura que estava destapada, os gatos-pingados abriram a porta de trás e começaram a remover os ramos com rosas, cravos, estrelícias, gladíolos e outras flores que adornavam o caixão.
Pouco depois retiraram o esquife e desceram-no para a tumba que tinha três prateleiras de cada lado mas só uma delas ocupada.
A época outonal tornava normal a chuva muito miúda que caía quasi imperceptível mas molhava as inúmeras pessoas, quasi todas de escuro vestidas e guarda-chuva aberto, que haviam comparecido para o derradeiro adeus ao jovem Lúcio Costa tão precocemente falecido.
Um homem dos seus cinquenta e muitos anos abraçado a uma mulher de idade muito próxima, ambos com os olhos vermelhos e húmidos, aproximaram-se da cova onde já estava arrumado o ataúde com o corpo do filho e ele para lá lançou uma rosa e a mãe uma tulipa.
O mesmo fizeram duas jovens com menos de trinta anos: uma era Lucinda, a irmã do falecido e outra a namorada Judite.
A cobertura foi colocada e as flores, com o celofane envolvente coberto por gotículas de água, foram sendo postas como enfeite sobre ela enquanto as pessoas se retiravam depois de proferirem palavras, quasi segredadas, de conforto aos familiares.
Até que tudo ficou vazio...
 
- Quem está aí? – perguntou uma voz um tanto abafada.
Lúcio estava a relembrar as últimas horas, mas interrompeu o pensamento.
- Quem veio para esta sepultura? – insistiu a mesma voz.
Resolveu responder, a medo:
- Sou eu!
- Ora! Mas quem és tu?
- Sou Lúcio Costa.
- Não conheço! Mas és um Costa e estás no jazigo que eu mandei fazer. Portanto és meu descendente. Quem é o teu pai?
Lúcio nunca pensou que depois da morte se poderia conversar. Achou muito interessante e, ainda receoso, disse:
- Sou filho do Jaime e da Ana Costa.
- Sim? Então és meu neto! Eu sou Serafim Costa. Morri cedo e nunca te conheci. Mas vamos ter uma eternidade para conversar.
- E então não vamos para o céu ou para o inferno? – perguntou, com curiosidade, o recém-falecido.
- Não! Nada disso!
- Então vou ficar aqui para sempre?
- Se não fores trasladado, sim. Mas há muitos outros detalhes que depois te contarei – falou o mais antigo morador no jazigo.
- Está aqui desde quando? – quis saber o jovem acabado de chegar.
- Desde 1960. Morri nesse ano com trinta e oito anos e vim inaugurar este local. Os outros mortos da minha família estão sepultados no cemitério lá da aldeia, mas eu decidi mandar fazer este sem me passar pela cabeça que pouco depois viria para aqui desterrado. Ironias da vida...ou da morte...
- Posso chamar-te avô?
- Claro que sim, meu neto! – anuiu, satisfeito, o Serafim.
E continuou:
- E tu? Que idade tens?
- Sou muito novo! Nem sequer sou casado. Tenho trinta anos e morri num acidente de automóvel – falou o Lúcio.
- Muito novo, mesmo! – fez uma pausa e continuou o que já era só ossadas – Todavia, por sádico que pareça, devo confessar-te que fico satisfeito por ter aqui uma companhia. Há quarenta e sete anos que estou sozinho. Têm-me valido uns tipos aqui das campas do lado e de trás com quem consigo conversar quando há silêncio.
- Mas tu não és um esqueleto? – inquiriu o Lúcio – Então como consegues falar?
- Ahh...pensavas que só tocava castanholas com os maxilares? Esquece! Foi uma piada. Agora a sério: falo porque está aqui a minha alma. Não subiu aos céus nem desceu aos infernos. Está aqui. E a tua também está aí contigo – explicou o velho.
- Eu bem me parecia, mas estou com comichões pelo corpo todo e com a conversa ainda não prestei muita atenção a certas coisas.
- Sabes o que te provoca as comichões? É a decomposição do teu corpo. Quando fores só esqueleto ficas aliviado – disse o Serafim.
- Estou surpreendido com isto tudo... Olha, avô! Mas não se consegue ver nada?
- Aqui não! Está escuro. Mas aqueles cuja alma pode sair do caixão podem ver e dão grandes passeios. Às vezes vêm até aqui conversar um bocado com os que cá foram sepultados, mas preferem ir visitar os familiares e conhecidos vivos embora não consigam comunicar com eles. Limitam-se a observar. E há uns fanáticos que passam as noites nos clubes de strip-tease e noutros locais que nem digo.
O jovem morto estava estupefacto:
- Nunca pensei que isto fosse assim! E tu não podes sair?
- Infelizmente tive a má ideia de fazer o jazigo para não levar terra. Assim, o caixão é revestido a chumbo, a madeira não se desfaz e eu, ou a minha alma, estou aqui encurralado. E tu também não vais poder sair – explicou o avô.
- Mas que chatice! Se pudesse sair era muitíssimo mais interessante.
- Mas não podes. Paciência!
- E não podemos pedir a essas almas que andam na boa vida para nos darem informações do que acontece lá fora? – quis saber o Lúcio.
- Sim, podemos! Mas eles não nos ligam muito. São uma espécie de elite.
- Quer isso dizer que os mais pobres, os que estão na terra, são os mais livres e poderosos depois da morte? – perguntou o jovem.
- Digamos que, de um modo geral, é assim!
O morto por acidente ficou calado por uns momentos e depois mudou de assunto:
- Então, se tu morreste em 1960, não deves saber quasi nada dos avanços que houve nas ciências e nas técnicas, nos últimos cinquenta anos. Nem dos acontecimentos históricos...
- Sei algumas coisas porque um dos mortos aqui do lado tinha cinquenta e tal anos quando para aqui veio e só cá está há uns oito ou nove meses! Mas tu podes contar-me muito mais.
- Terei muito gosto, avô!
- E também me vais contar tudo sobre a família. Os meus descendentes e a minha mulher Margarida. Ela casou outra vez?
- Não! A avó nunca mais casou – esclareceu o neto.
- Gosto de saber isso! – disse o Serafim, satisfeito.
E depois de uma pausa:
- Sabes uma coisa? Quando abriram a tumba para te sepultar, o teu caixão bateu com força no meu e como entrava luz eu pude verificar que há uma ruptura no esquife. Portanto fiquei com a esperança de poder sair desta prisão.
- Mas isso seria óptimo! – exclamou o Lúcio – E podias também libertar-me?
- Temo que não seja possível abrir qualquer brecha no teu. Lembra-te que eu sou imaterial. Ainda não percebi como consigo ter os sentidos activos; parece incoerente, não é? Mas são os mistérios da morte...ou desta outra vida, para falar com mais rigor.
- Mas podes tentar, avô! E se saíres daí como é que depois sais do túmulo?
- Penso que não será difícil. Os que estão cobertos de terra conseguem passar pelas porosidades do terreno. Mas se chover muito e estiver tudo empapado tem dificuldades. Algumas almas já saíram e quando regressaram tiveram de esperar vários dias porque entretanto começou a chover muito e não conseguiram entrar.
- Então tu deves poder sair. Quando experimentas? – quis saber o Lúcio.
- Quem esperou quarenta e sete anos pode esperar mais algumas horas. Estou a gostar de falar contigo.
- Oh avô! Desde que me passei ainda não dormi nem tenho sono. Quando é que durmo? – questionou o recém-chegado.
- Agora fizeste-me sorrir. Nós não dormimos! – esclareceu o velho habitante do jazigo.
- Então isto deve ser muito chato quando não se tem com quem conversar – disse o neto, desalentado.
- Pois é! Mas como temos toda a eternidade pela frente, não há pressa nem razão para nos irritarmos. Ainda vais aprender a viver esta nova situação.
- Oh avô! Não queres tentar agora sair daí?
- Calma! Fala-me dos membros da nossa família que ainda estão na primeira vida. Além da minha mulher Margarida e do meu filho Jaime não conheci mais ninguém. Ahh...esquecia-me dos meus pais e do meu irmão...
E o Lúcio recomeçou a falar
- Esses já morreram e estão sepultados na aldeia. Lá na casa há ainda a minha mãe Ana e a minha irmã Lucinda que tem vinte e sete anos. E são estes os teus descendentes. É uma família pequena.
- Se sair daqui vou vê-los. Onde moram? – perguntou o Serafim.
- Numa casa antiga que era da vovó e foi restaurada. Penso que foi onde tu viveste, aqui na cidade.
- Óptimo! Assim sei lá ir facilmente. Agora já está escuro, mas mal o dia clareie vou tentar escapar-me daqui de dentro.
E a conversa continuou durante toda a noite.
O Serafim chegou mesmo a apresentar o seu neto aos vizinhos com quem conversava habitualmente. Durante essas horas nocturnas o silêncio no exterior da tumba era normalmente maior e mais fácil trocar palavras.
Quando começou a ouvir-se mais barulho, o avô disse:
- Ouves o som de carros? Quando se atinge este nível de ruído é sinal de que já é dia. É agora que vou tentar sair daqui.
Ao fim de algum tempo:
- Lúcio! Encontrei a fissura no chumbo e na madeira e estou a conseguir...
- Força, avô!
E logo a seguir:
- Consegui! Consegui! Graças aos tipos que fizeram com que a tua urna batesse na minha. Uns brutos simpáticos.
- Parabéns, avô!
- Agora vou tentar escapulir-me lá para fora.
E não demorou muito que o mais novo hóspede do sepulcro ouvisse:
- Já cá estou! Isto está cheio de ramos de flores. Eu sei que são do teu funeral mas até parece que foram aqui colocadas para me saudar – disse, feliz, o Serafim.
E concluiu:
- Vou passear pela primeira vez. Até logo, meu neto!
- Até logo, avô!
A viagem até à que fora a sua casa em tempo de vida foi lenta porque tudo era novo e diferente. Mas conseguiu lá chegar ao fim de quasi três horas a olhar não só para tantas novidades mas também para coisas antigas de que se lembrava.
Entrou na habitação e, conforme a percorria, ía falando para si mesmo:
- Aquele deve ser o meu filho Jaime. Deixei-o com dez anos e já está velhote. E aquela deve ser a Ana, a mulher. Teve bom gosto: saiu ao pai! Mas onde estará a minha Margarida?
Entrou num quarto onde pôde observar uma senhora idosa, vestida de negro e estendida sobre a cama.
- É ela, a minha Margarida!
Olhou durante uns largos segundos e exclamou:
- Mas está morta! Deve ter sido com a comoção do passamento do neto. Ainda é bonita apesar de ter oitenta e um anos.
E falou para ela:
- Margarida, meu amor! Vim-te buscar para passarmos a eternidade juntos.
A recém-falecida ouviu e perguntou, intrigada:
- Mas quem é?
- Sou eu, o teu marido Serafim! Tu não me podes ver mas eu ainda posso ver o teu corpo. Continuas linda, minha Guida...
- Oh! Mas eu não te vejo...
- Pois não! Quem está aqui é só a minha alma, invisível.
- Mas a minha não pode sair daqui, parece-me! – disse a Margarida.
- Pois não! Estarás aprisionada no teu corpo durante alguns dias.
- E como soubeste que eu tinha morrido?
- Humm...é uma história curiosa. Depois conto-ta. Agora vou ver melhor a casa e as pessoas que cá estão. Daqui a pouco virei fazer-te companhia. Até já, minha querida!


publicado por António às 15:00
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39 comentários:
De Paula Raposo a 31 de Agosto de 2007 às 14:51
Em termo de imaginação está fabulosa a tua história! Beijos.


De António a 31 de Agosto de 2007 às 15:09
Olá, Paula!
Obrigado pela visita e pelo comentário.

Beijinhos


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