Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Segunda-feira, 1 de Outubro de 2007
Histórias curtas XXXI - Pelos trilhos do betão (parte II e última)
Lá fora já não chovia e os candeeiros da rua estavam acesos.
Voltou a descer a rua com a passada lenta e o olhar perscrutante, dirigindo-se para uma zona mais moderna da cidade.
Agora as pessoas não eram tão visíveis. O anoitecer torna as gentes que andam na rua mais anónimas: menos pessoas e mais sombras.
Estava a caminhar por uma pequena área comercial que trespassava de lado a lado um moderno e enorme prédio de betão quando viu um homem já de certa idade, barba por fazer, cabelo desgrenhado e sujo, a deitar-se num curioso arranjo de caixas de cartão. Era a sua casa!
O Álvaro não resistiu:
- Boa noite! Já vai dormir?
- Sim! Sou doente dos pulmões e canso-me muito. Preciso de descansar.
O homem dos óculos redondos olhou para o desgraçado e notou um ar macilento que a barba disfarçava a um primeiro olhar. Ouviu-o tossir e reparou na sua magreza. Pensou:
- Este coitado não vai viver muito tempo. Doente dos pulmões e a viver assim...
- E não se trata? – perguntou.
- Já fui a um médico que me deu uns medicamentos e me quis internar. Mas eu não quero estar preso.
- E já tomou os remédios?
- Já acabaram!
- E não vai buscar mais?
- Fizeram-me bem, os comprimidos, mas se vou lá eles podem querer internar-me...
- E comeu alguma coisa?
- Sim, senhor! Fui comer uma sopa dos pobres e um pão. Felizmente é perto daqui, senão nem forças tinha para ir e vir.
- E não tem frio?
- Graças a Deus estas caixas são boas e tenho bastante roupa. Passo bem a noite.
- E não tem nada para comer, aqui?
- Agora não!
- Então espere que eu vou buscar alguma coisa...
E o Leite foi a uma pastelaria e trouxe uns bolos, uns pacotes de bolachas e duas garrafas de águas.
Quando regressou o homem parecia estar a dormir.
- Ó senhor! Tenho isto aqui para si.
O pobre indigente mexeu a cabeça, reconheceu quem o chamava e sentou-se.
- Tome lá! Coma agora qualquer coisa e amanhã de manhã come mais.
- Muito obrigado! Deus o ajude como me está a ajudar a mim.
- Então boa noite! – despediu-se o benfeitor enquanto o miserável comia um bolo, visivelmente satisfeito.
E a caminhada prosseguiu.
Na rua formara-se um nevoeiro com alguma densidade e que pairava baixo.
De repente, ouviu uma voz a gritar:
- Agarra que é ladrão! Agarra que é ladrão!
Quasi ao mesmo tempo passou por ele, a correr, um rapazote.
Não conseguiu ver mais do que isso: que era um rapazote, e que pela velocidade com que fugia devia ser ele o ladrão.
Andou mais um pouco e a sombra que via à sua frente começou a tomar a forma de um homem. De um homem idoso que estava parado no passeio a vociferar baixinho enquanto olhava para o lado por onde tinha fugido o rapaz.
- Boa noite! – saudou o Álvaro – Foi o senhor que gritou para agarrarem o ladrão?
- Sim, fui eu! Maldito rapazola!
- Mas pareceu-me ser ainda muito novo...
- É novo mas um gabiru de primeira categoria – resmungou, ainda irritado, o velhote.
- E conhece-o?
- Sim! É um miúdo de dez ou onze anos que costuma fazer assaltos de...como se diz?
- Esticão!
- Isso! Costuma fazer assaltos de esticão por estas bandas. Aparece de vez em quando e de surpresa. À noite. No resto do tempo deve andar a malandrar e a roubar por outras zonas.
- E nunca ninguém o agarrou? Nem foi detido pela polícia? – inquiriu o homem da gabardina.
- Que eu saiba não! O senhor viu como ele corre? Ninguém o consegue apanhar e como é pequeno esgueira-se com uma facilidade incrível. Só lhe digo que não se pode andar na rua – queixou-se o lesado.
- Mas...porque anda o senhor, que até já não é novo, aqui à noite sabendo que pode ser assaltado? – interrogou o Leite.
- Estive ali no café com uns amigos e moro além, a cerca de trezentos metros. Confiei que num percurso tão curto nunca me roubariam, afinal... – e fez um esgar engraçado.
- E o que lhe roubou o rapaz?
- Uma pasta de couro antiga de que gostava muito. Trouxe-a porque com este tempo não queria molhar uns jornais e dois livros que levei para mostrar aos meus amigos – esclareceu o idoso.
E concluiu:
- Mostrei, mas fiquei sem eles! – desabafou, ainda chateado.
- Bom! Agora parece-me que não há nada a fazer, salvo apresentar queixa na Polícia.
- Pois é! Mas agora vou para casa! Talvez amanhã vá à esquadra. Mas já sei que não adianta nada...
- Então boa noite e tenha cuidado! – despediu-se o caminheiro.
- Boa noite e obrigado! Vou ter cuidado, vou...senão um dia ainda me matam!
E o Álvaro Leite, depois de tomar mais uns apontamentos, prosseguiu o seu caminho, agora com um passo mais rápido porque a temperatura já tinha baixado bastante.
Chegou a uma praceta onde confluíam várias ruas: cinco, para ser rigoroso.
Pelos passeios podiam-se ver mulheres a fazer trottoir ou encostadas às paredes ou aos candeeiros.
Transeuntes a pé, mas sobretudo potenciais clientes de automóvel, paravam para falar palavras breves com as mulheres da noite.
Umas entravam nos carros que arrancavam enquanto uns tipos, provavelmente proxenetas, anotavam as matrículas das viaturas que levavam mulheres. Outras entravam para pensões manhosas acompanhados por algum homem.
Olhou para todos os lados mas foi uma rapariga ainda nova, magra, loira, de botas e uma saia muito curta que lhe chamou mais a atenção.
Dirigiu-se a ela e verificou que já não era assim tão nova: teria uns trinta anos, mas não é fácil adivinhar a idade destas mulheres de vida tão irregular.
- Olá! Boa noite! – disse o Álvaro – Quanto é?
- Dois pratos, quinze euros, filho! – respondeu a mulher.
- E onde?
- Temos aqui esta pensão que é muito limpa. Tens de pagar mais cinco euros pelo quarto.
- Vamos então! – disse o homem.
Entraram e uma recepcionista com mais de sessenta anos, talvez nem tantos, com o cabelo rarefeito e uns óculos muito graduados disse:
- São cinco euros pelo quarto.
E virando-se para a prostituta disse:
- Podes ir para o 12.
O Leite pagou e ambos subiram umas escadas que rangiam a cada pé num novo degrau.
Uma vez dentro do quarto 12, que ficava perto das escadas, a mulher falou:
- Fecha a porta e dá-me o dinheiro. Tens camisa? Se não tiveres eu tenho aqui mas tens de pagar mais três euros.
Ele fechou a porta, tirou o dinheiro da carteira e disse à mulher:
- Escusas de te despir porque eu não quero ter sexo. Vamos conversar pois preciso de desabafar. Não há problema, pois não?
Ela fez uma careta esquisita mas anuiu:
- Por mim está bem!
Ele sentou-se na borda da cama, junto aos pés, e ela perto dele.
- Tens a certeza que o teu homem não se chateia? – perguntou ele.
- Não te preocupes que eu não tenho homem. Por isso não ataco os tipos dos carros. Prefiro vir para aqui. Mas tu és polícia? – falou ela.
- Não! Podes estar descansada. Tenho problemas com a minha mulher e às vezes preciso de conversar.
- E não precisas de foder?
- Também! Mas hoje não quero – esclareceu o Álvaro.
E continuou:
- Tu és bonita! Não arranjas outro modo de vida? Um dia estarás velha e feia, e depois?
- Espero que os meus filhos cuidem de mim como eu cuidei da minha mãe.
- Já morreu?
- Já! Disseram-me que com Sida. É por isso que eu só alinho com camisinha. Coitada da velhota. Sofreu muito! – confessou a meretriz.
- Também andava nesta vida?
- Sim! Mas no tempo em que ela começou não se tinha medo dessa doença terrível. Só dos esquentamentos e da sífilis.
- Mas tu és nova! Os teus filhos ainda são muito pequenos, calculo.
- Tenho vinte e sete anos. O rapaz tem nove e a rapariga tem sete. São filhos do mesmo homem. Mas ele foi de cana e apanhou dez anos. Agora sou eu sozinha a aguentar com tudo – lamuriou-se a mulher da vida.
- E onde vives? – continuou o interrogatório, o Leite.
- Vivo aqui perto num quarto, com os meus filhos. A dona é porreira comigo e vai-me ajudando alguma coisa.
- Mas pagas uma renda...
- Pois então! À borliú é que era bom!
- E quanto pagas?
- Cem euros por semana.
- Isso dá...cerca de catorze euros por dia, mais ou menos. Não me parece caro!
- Para mim é! Há dias bons, mas há outros muito maus. E tenho dois filhos para sustentar.
- Pois! Tudo é relativo. Como te chamas? Eu sou Jorge.
- Eu sou Andreia. Faz de conta... – e riu-se, a mulher, deixando ver que os dentes ainda pareciam estar em bom estado.
Olhou para o relógio e falou:
- Vamos embora! Tenho de arranjar mais clientes e daqui a pouco já não aparece ninguém.
- Ok! Um dia destes venho cá falar outra vez contigo, está bem?
- Tem a certeza que não é da polícia?
- Juro-te!
- Humm...quem mais jura mais mente!
Mas riu-se.
Saíram juntos e na rua despediram-se com um singelo:
- Boa noite!
 
Cerca de meia hora depois o Álvaro Leite entrou em casa.
Ouviu o televisor ligado e dirigiu-se à sala.
A sua mulher tinha adormecido no sofá. Acordou-a com doçura e beijou-a.
- Ah...és tu! Chegaste agora? – perguntou ela.
- Cheguei!
- Está a chover?
- Não, Sara! Já choveu qualquer coisa mas há horas que não chove. Mas está nevoeiro.
- E deu resultado esse teu deambular pela cidade?
- Muito interessante! Depois conto-te porque agora parece que estás é com vontade de ir para a cama – disse o marido.
- Pois estou! Só não fui porque estava à tua espera.
Fez uma pausa e concluiu:
- Que raio de mania esta de quereres ser escritor aos cinquenta anos...


publicado por António às 13:49
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De sophiamar a 3 de Outubro de 2007 às 22:11
Um excelente conto! Em dois episódios abordas a vida de uma grande cidade. Com as suas graças e desgraças. Estas ultrapassam em muito as outras mas vida é mesmo assim. Miséria de todos os tipos. E tu conseguiste abarcá-la toda ou quase. Distanciaste-te do narrador porque como sabemos tu não cabes em nenhuma das personagens que criaste. Pelo menos por inteiro, embora toda a escrita contenha algo de autobiográfico. Essa cabecinha, engenheiro, vai de vento em popa. Até pareces o Maigret! E eu concordo! Cusquices!

Beijinhosssssssss


De António a 3 de Outubro de 2007 às 23:58
Olá, Isabel!
Obrigado pelo comentário.
Pois fica sabendo que estou a escrever um policial.
Mas só postarei quando estiver concluído e muito bem revisto.
Não quero que tenha nenhuma falha.
Vamos ver o que vai sair...

Beijinhos


De sophiamar a 4 de Outubro de 2007 às 16:35
Ora toma lá! Temos o nosso escritor a regressar em força. Sabes, gostei muito de um conto marotão, o primeiro que li de ti. Havia um patrão, uma secretária, um apartamento.... agora o comissário António, com cachimbo, gabardina e chapéu está de regresso á investigação.
Excelente, amigo António Maigret...perdão Sherlock Dias... António Castilho Dias ...o comissário do NorteAhahahahah

Tou cá uma chata! Eheheheheh


Beijinhosssssss


De António a 4 de Outubro de 2007 às 18:42
Querida Isabel!
Penso que te referes a um conto da série "Diálogos de gente"; creio que foi mesmo o último e o único que era um conto.
E como a secretária não foi para a cama com o patrão fui muito aplaudido pelas senhoras minhas leitoras....ah ah ah.
Como sabes eu costumo meter as mulheres na cama...salvo seja!...ah ah ah
Tony Poirot, se faz favor!
É o meu detective favorito, o Hercule Poirot.
Ou melhor...era!
Porque agora vai aparecer outro...ah ah ah
(e que por acaso também se chama António...por mero acaso, juro!)

Beijinhos, chata
ihihihihih


De sophiamar a 5 de Outubro de 2007 às 14:11
Ora venha lá o TonY Poirot que eu estou desejando encontrá-lo por aí. Olha que eu tenho um fraquinho por inspectores! Vê lá onde te metes e onde me vais meter. António? Olha eu gosto do nome. O meu tio mais velho chama-se António mas sempre foi chamado pelo Tio Tó. Eu sempre o tratei por " Titó". E até estou proibida de o tratar por outro nome.
Quanto ao inspector , o nome está aprovado. Então, Tony Poirot, leva lá beijinhos da chata. Ahahahah
Bom feriado!


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