Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
De vez em quando o ex-bancário tinha de se levantar e mexer as pernas mas rapidamente voltava à posição inicial.
Foi ouvindo o motor de carros que depois passavam bem perto de si. Eram muito poucos pois a estrada tinha um reduzidíssimo movimento. Mas nada de suspeito observara.
Seriam umas nove e meia quando ouviu o som de um motor que se tornava progressivamente mais audível até que o barulho cessou, de repente. Essa viatura, que vinha do lado oposto ao dele àquele donde apareceria o Jaime, não devia ter ficado muito longe,
Arrumou o livro e ficou à escuta. O coração batia mais acelerado. Cerca de um quarto de hora depois apareceram três pessoas. Os dois adultos usavam longas gabardinas com capuz e meias enfiadas na cabeça. Irreconhecíveis, caminhavam tão rapidamente quanto o permitia o suposto rapazito, tapado por um cobertor que não deixava que se lhe visse nada do rosto, e dando uma mão a cada um dos adultos que quasi o puxavam.
Chegados à entrada do atalho por ele meteram.
O “detective” pensou consigo mesmo:
- Estão a arriscar bastante ao andar assim. O carro deve estar muito perto. Vou vê-lo.
E logo saiu do seu esconderijo e caminhou até que viu meio escondido atrás de uns arbusto um carro preto. Aproximou-se e viu que era um Volkswagen Polo.
- Humm...é igual ao do tal Bruno que é irmão da Sandra... será que as minhas suspeitas se confirmam? – elucubrou.
As matrículas estavam tapadas por panos. Removeu o da frente e leu: 80-28-XJ. Voltou a colocá-lo a cobrir a chapa depois de ter escrito números e letras num papelito.
Deu uma olhadela para dentro do veículo mas não notou nada particularmente relevante para além de cordas e trapos.
Voltou ao seu ponto de observação.
Olhou o relógio, coisa que fizera inúmeras vezes nessa manhã e murmurou:
- Quasi dez e meia! Já falta pouco.
Começou então a congeminar:
- Será que há quatro pessoas envolvidas nisto? O Eurico, a Sandra, o irmão e o outro que passou aqui. Pelo andar parecia uma mulher mas não tenho a certeza pois estava com uma capote que não deixava ver o corpo em condições. Pode ser que o Tiago tenha algumas informações. Se for uma mulher será provavelmente a namorada dele, a tal Sónia. Tenho de verificar se tem álibis. Sendo assim, foi mesmo o Eurico que levou a carta a pedir o resgate a casa do irmão. Custa-me a acreditar que ele tenha feito uma coisa destas a pessoas de família, mas... não seria o primeiro, e ele não morre de amores pelo Jaime.
Não demorou muito tempo que chegasse o Ford Fiesta da Zulmira conduzido pelo marido. Meteu pelo atalho e o António seguiu-o a pé.
Naturalmente andava mais devagar e foi-se atrasando mas, a certo momento, ouviu o motor parar.
- Já lá está!
De facto, o carro preto parou junto da cerca de arame.
O coxo saiu do carro com as mãos no ar e gritou:
- Já cá estou!
De repente, surgiu da mata um encapuçado que apontava uma pistola.
- Afaste-se do carro! – disse.
O homem ameaçado teve a sensação de que aquela voz não lhe era estranha, mas tinha de se concentrar no que estava a fazer.
Logo de seguida surgiram, do mesmo ponto de onde tinha aparecido o que parecia ser o chefe, um vulto adulto vestido do mesmo modo e uma criança tapada por um cobertor.
- Tiago! Não tenhas medo que o pai está aqui! – gritou o Jaime.
- Pouco barulho! Vamos fazer exactamente o que eu disse – falou o líder.
O outro patife entrou para a parte traseira do Fiesta levando o garoto, abriu uma pasta gorda e viu o dinheiro.
- Está aí o dinheiro? Vê bem se não há jornais ou papel que não sejam notas. Agora não dá tempo para o contar. Mas ai deles se não estiver todo! – falou o sujeito armado.
Pouco depois, o outro fechou a mão esquerda enluvada, esticou o polegar para cima em sinal de que estava tudo bem e saiu trazendo a pasta com o pecúlio extorquido ao Campelo. E começaram a correr pelo atalho em direcção à saída.
O Morais ainda presenciou a parte final da cena, de longe, e escondeu-se bem até a parelha passar por ele. Dirigiu-se então para o carro onde o pai ainda procurava desamarrar completamente o Tiago.
Quando lá chegou já ambos estavam abraçados, chorando convulsivamente, e o homem dizia:
- Estás salvo, meu filho! Agora vamos para casa porque a mamã está à nossa espera.
E mais falava.
E mais choravam.
O Morais assistia comovido e umas lágrimas, não sabia bem se de alegria ou de raiva, escorreram-lhe pela face.
- Estás bem, meu filho? – perguntava o pai.
- Estou! Agora estou! – e nada mais conseguia dizer, o rapazinho.
O “detective” deixou passar alguns minutos até que falou.
- Vamos embora, amigo Jaime! A mãe também quer abraçar o Tiago!
- Tem razão!
A manobra de inversão de marcha só foi possível com umas arranhadelas na pintura do carro. Mas que importava isso?
O vizinho resolveu conduzir a viatura enquanto o homem baixo, feio e coxo telefonava para a sua mulher.
Só parou junto do local onde deixara o seu Mercedes. Apeou-se e os dois automóveis dirigiram-se para a rua nova junto da escola.
O vizinho também entrou em casa do Campelo e assistiu a uma cena emocionalmente muito forte, com os três agarrados a chorar e a Eulália, embora um pouco mais afastada, também parecendo uma fonte. Pela segunda vez nesse dia o “detective” não aguentou e sentiu as lágrimas a correr-lhe pelo rosto.
Olhava para o miúdo que praticamente não dissera outras palavras para além de papá e mamã e pensou:
- Quatro noites sabe-se lá em que condições. Este miúdo deve estar fortemente traumatizado. Vai precisar de muito apoio psicológico ou mesmo psiquiátrico.
Lembrou-se então de telefonar para o escritório para dar a boa nova.
Atendeu a Catarina mas falou com o Eurico.
Todos parecem ter suspirado de alívio.
- Depois eu passo por aí para vos contar pormenores – prometeu antes de desligar.
Ocorreu-lhe então que talvez lá estivessem pessoas com responsabilidades no rapto. E lembrou-se que devia verificar se Bruno e Sónia tinham ou não álibi.
Foi então que ouviu o petiz dizer:
- Tenho fome e sede!
Imediatamente a Eulália foi buscar bebida e alimento para o seu Tiaguinho. Observou o moço a comer sofregamente e continuou a cogitar:
- O Paulo já me deu os endereços dos sítios onde trabalham os meus suspeitos. Vou-lhe mandar uma sms com a marca e matrícula do carro dos facínoras.
E assim fez.