Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Domingo, 23 de Março de 2008
Histórias curtas XXXIX - Sonolência

Reconversão do texto “Diálogos de gente (IV) – O dorminhoco” de 29 de Março de 2006

 

- Mas que raio de homem! – praguejou a Natália – Este desgraçado nasceu cansado!
A mulher tinha-se levantado às sete horas e já executara uma série de tarefas: lavar-se, vestir-se, pôr a mesa para o pequeno-almoço dos dois filhos, arrumar roupa e louça que ficaram a lavar ou a secar quando foi para a cama, acordar o Tiago e o Filipe para irem para a escola, e ainda tinha várias outras para fazer antes de sair de casa às oito e meia para entrar ao serviço às nove.
O marido, calmeirão e sempre sem pressa, também devia entrar às nove, mas raramente tal acontecia. Se o fizesse com um quarto de hora de atraso já não era nada mau.
De vez em quando a Natália entrava no quarto, fazia barulho e dizia:
- Levanta-te, homem! Olha que qualquer dia ainda te despedem!
Mas isso é que era bom!

Levantar-se?

O Mário Rodrigues?
A Natália, pequena e frenética, continuou a sua labuta de formiguinha: ajudou os filhos a vestirem-se (Filipe, o mais novo, era muito parecido com o pai e ela vestia-o permanecendo o miúdo em pé, agarrado a ela e com os olhos fechados), chamou mais uma vez o marido e abriu a persiana totalmente para que o quarto ficasse ainda mais bem iluminado. O homem resmungou com uma espécie de grunhido, mexeu-se, mas levantar-se é que não. Ela aproximou-se do ouvido e disse:
- Olha que já passa das oito e meia.
- Humm?
- Já passa das oito e meia. Vou sair e levo os miúdos. E tu vê lá se te levantas, meu madraço!


Ao fim da tarde, quando o Mário regressou a casa já lá estava toda a família.
A mulher é que usava o automóvel pois levava os filhos à escola e trabalhava num local com poucos transportes públicos.
Ele andava de autocarro.

 - Boa noite! – disse o Rodrigues bonacheirão.
E foi beijar a mulher que estava na cozinha.
Os dois rapazes apareceram pouco depois:
- Boa tarde, papá! – cumprimentaram-no e regressaram ao quarto onde ambos dormiam.
- Natália! – disse o homem com um tom de voz pouco habitual.
Ela notou a diferença e, parando o que estava a fazer, perguntou:
- Que foi, Mário?
- Hoje houve chatice no emprego.
- Sim? – perguntou ela, apreensiva – Então desembucha, homem!
- O meu chefe, o Matos, chamou-me ao gabinete dele e deu-me o raspanete maior de todos os que já ouvi – começou a Mário.
- Mas porquê? – insistiu a Natália.
- Hoje eu adormeci outra vez e só cheguei ao trabalho às onze horas – confessou ele.
- Meu Deus, homem! E o Matos ameaçou-te, já percebi! – avançou a mulher.
- Pois! Disse-me que, se não começar a entrar à hora contratual, me instaura um processo disciplinar para despedimento com justa causa – contou ele.
E os olhos daquele homem enorme já estavam brilhando com lágrimas nascentes.
- Mas que chatice! – disse ela – Eu fartei-me de te avisar mas tu não te esforças para cumprires os horários… Sabes muito bem que não se pode brincar com essas coisas.
- Eu sei, mulher! – e fios de água já corriam pelo seu rosto – Mas é superior às minhas forças!
- As pessoas não são todas iguais, já se sabe, mas temos de arranjar um método de tu cumprires os teus deveres. Lembra-te que temos dois filhos pequenos, uma casa para pagar, e não podemos ficar sem o teu ordenado. E mesmo o subsídio de desemprego não é vitalício. E podes ter dificuldade em arranjar outro trabalho. E se o conseguires pode voltar a acontecer-te o mesmo – dissertou a Natália.
- Mas que é que eu hei-de fazer? Não posso ir dormir para lá!
- Deixa-te de parvoíces! Podes jantar menos, deitar-te mais cedo e eu salpico-te com água para tu te levantares. E sais ao mesmo tempo que eu e os miúdos. Se chegares lá mais cedo até é uma forma de demonstrares que estás regenerado. E descansas mais ao fim de semana – avançou Natália com uma solução.
- E a que horas achas que tenho de me deitar? – perguntou, conformado, o pacato Mário.
- Tu precisas de dormir dez ou onze horas por noite. Para te levantares às oito, oito e um quarto, tens de te deitar por volta das dez – sentenciou a mulher.
- Mas isso é muito cedo! – pareceu chateado, o homem.
- Tu já adormeces sempre a ver a televisão, portanto passas a dormir na cama em vez de ser no sofá. E até estás mais bem instalado – rebateu a verdadeira chefe da família.
- Mas eu gosto de ouvir o som do aparelho com os tipos a falar.
- Tu dás-me mais trabalho que as duas criancinhas juntas! Raio de homem! Olha! Ligas o rádio despertador e adormeces ao som de música ou de notícias. A TSF está sempre a dá-las. Eu, quando me for deitar, preparo o aparelho para tocar às sete – decidiu, mais uma vez, a Natália.
- Eu sou um desgraçado! Se não fosses tu não sei o que seria de mim... – e o bom gigante continuou a choramingar.
- Ó meu amor! – e ela deu-lhe um beijo – Eu estou aqui para te ajudar. Tu não tens culpa. És assim e não vais mudar, portanto temos de arranjar subterfúgios para ultrapassar esse defeito.
- És a melhor esposa e mãe do mundo – disse, agarrado à mulher, o Mário dorminhoco.

 

Os dias, as semanas e os meses foram passando.

Sob as ordens cada vez mais exigentes da mulher, o homem foi saindo de casa às oito e meia e chegava à firma a tempo.

A Natália, por sua vez, estava satisfeita com os resultados da sua liderança e aplicava aos filhos os mesmos métodos: rigor e severidade. Mas muito amor, também.

Mais de meio ano passara sob o regime militarista imposto por ela.

Um fim de tarde, já a mãe e os rapazes estavam em casa, chegou o Mário.

Cabisbaixo, foi para a sala, sentou-se no sofá habitual, fincou os cotovelos nas pernas e apoiou a cabeça nas mãos.

Perante o silêncio do marido, a mulher, que já estava na cozinha, foi ter com ele e ao vê-lo naquela posição pressentiu que algo de anormal acontecera.

- Que foi Mário?

- Uma chatice! – levantou os olhos em direcção da mulher e estes estavam lacrimejantes.

- Parece que não foi coisa boa. Até estás a chorar…

- Fui apanhado pelo Matos a dormir na secretária.

- Ó meu Deus! – exclamou ela.

- E o pior é que não foi a primeira vez. Depois de almoço dá-me uma soneira tal que muitas vezes não aguento – confessou o sorna.

- Não me digas! Mas isso é grave! Pode dar direito a despedimento com justa causa.

- Pois é isso que ele vai fazer. Instaurou-me um processo disciplinar.

- Mas que grande merda! – desabafou a Natália – E agora o que vamos fazer?

- Sei lá! Acho que tenho de arranjar um trabalho com menos horas por dia para poder descansar aquilo que o meu corpo exige.

- Realmente! Já não sei mais o que fazer. Posso ir falar com o Matos e fazer-lhe um grande choradinho mas, mesmo que ele se condoa, pouco depois lá estás tu novamente a ser apanhado.

- Pois é! – falou o prevaricador – Eu já estava à espera que isto acontecesse e cheguei à conclusão que não posso ter um emprego deste tipo. Tem de ser uma coisa mais do género biscate: faço um serviço agora, outro mais logo…

- Também concordo! Vamos começar a procurar uma coisa desse género. Nem que ganhes um pedaço menos…

- Talvez o teu irmão me consiga um trabalho daqueles de andar na rua e fazer serviços para a firma dele – alvitrou o homem.

- Pois…serviços externos. E na rua não vais adormecer…espero!

 

Passados cerca de dois meses o Mário Rodrigues foi trabalhar para a empresa da qual o cunhado era um dos sócios.

Fazia todo o tipo de serviços ligeiros no exterior, ao jeito de paquete. Ganhava pouco mas até podia dormitar um bocadito no trabalho enquanto esperava por instruções, contudo, quando tocava a sair, lá ia ele todo contente.

Umas vezes usava transportes públicos, outras, sobretudo em viagens mais longas para as quais era designado algumas vezes, conduzia uma carrinha da firma.

Uma vez, ao fim de cerca de três meses nesta actividade, arrancou pelas dez e meia da manhã para um longa viagem. Parou para almoçar e retomou o caminho rumo ao seu destino.

A certa altura começou a sentir as pálpebras pesadas, muito pesadas, cada vez mais pesadas...

Pensou em parar para dormitar um pouco, mas insistiu com o objectivo de atingir alguma povoação próxima e então tomar um café.

Não teve tempo para isso.

Os olhos fecharam-se e quando os abriu percebeu que o carro estava a iniciar a queda por uma alta e íngreme ribanceira.

Depois…fecharam-se para sempre!



publicado por António às 14:41
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De sophiamar a 24 de Março de 2008 às 21:58
Olá, meu querido António!

Estive a ler o teu conto e fartei-me de rir apesar de teres enviado mais um para o outro mundo. Este homem não fazia outra coisa! Mas que grande " pastelão" como se chama aqui no Algarve a um dormente como este. A pobre mulher tinha "três filhos" e o mais velho ainda era o que tinha pior comportamento.
Pobre mulher! E já agora, pobre homem! Que fim tão triste! E lá ficou a dormir para sempre.
No entanto, deixas aqui o alerta, para o efeito da sonolência contrariada enquanto se conduz. O melhor é mesmo parar o carro e dormir .

Beijinhosssssss


De António a 25 de Março de 2008 às 09:17
Olá minha querida!
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Às vezes vou ver o teu blog que agora está virado para a divulgação de algarvios proeminentes.
Quando apareces lá tu?
ah ah ah

Beijinhos


De sophiamar a 28 de Março de 2008 às 09:16
Ahahahahah! António, brincalhão!

Desejo-te um óptimo fim de semana.

E vai escrevendo....

Beijinhossssss


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