Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Quinta-feira, 30 de Agosto de 2007
Histórias curtas XXIX - Num outro mundo
Tarde chuvosa no cemitério.
O carro fúnebre parou junto da sepultura que estava destapada, os gatos-pingados abriram a porta de trás e começaram a remover os ramos com rosas, cravos, estrelícias, gladíolos e outras flores que adornavam o caixão.
Pouco depois retiraram o esquife e desceram-no para a tumba que tinha três prateleiras de cada lado mas só uma delas ocupada.
A época outonal tornava normal a chuva muito miúda que caía quasi imperceptível mas molhava as inúmeras pessoas, quasi todas de escuro vestidas e guarda-chuva aberto, que haviam comparecido para o derradeiro adeus ao jovem Lúcio Costa tão precocemente falecido.
Um homem dos seus cinquenta e muitos anos abraçado a uma mulher de idade muito próxima, ambos com os olhos vermelhos e húmidos, aproximaram-se da cova onde já estava arrumado o ataúde com o corpo do filho e ele para lá lançou uma rosa e a mãe uma tulipa.
O mesmo fizeram duas jovens com menos de trinta anos: uma era Lucinda, a irmã do falecido e outra a namorada Judite.
A cobertura foi colocada e as flores, com o celofane envolvente coberto por gotículas de água, foram sendo postas como enfeite sobre ela enquanto as pessoas se retiravam depois de proferirem palavras, quasi segredadas, de conforto aos familiares.
Até que tudo ficou vazio...
 
- Quem está aí? – perguntou uma voz um tanto abafada.
Lúcio estava a relembrar as últimas horas, mas interrompeu o pensamento.
- Quem veio para esta sepultura? – insistiu a mesma voz.
Resolveu responder, a medo:
- Sou eu!
- Ora! Mas quem és tu?
- Sou Lúcio Costa.
- Não conheço! Mas és um Costa e estás no jazigo que eu mandei fazer. Portanto és meu descendente. Quem é o teu pai?
Lúcio nunca pensou que depois da morte se poderia conversar. Achou muito interessante e, ainda receoso, disse:
- Sou filho do Jaime e da Ana Costa.
- Sim? Então és meu neto! Eu sou Serafim Costa. Morri cedo e nunca te conheci. Mas vamos ter uma eternidade para conversar.
- E então não vamos para o céu ou para o inferno? – perguntou, com curiosidade, o recém-falecido.
- Não! Nada disso!
- Então vou ficar aqui para sempre?
- Se não fores trasladado, sim. Mas há muitos outros detalhes que depois te contarei – falou o mais antigo morador no jazigo.
- Está aqui desde quando? – quis saber o jovem acabado de chegar.
- Desde 1960. Morri nesse ano com trinta e oito anos e vim inaugurar este local. Os outros mortos da minha família estão sepultados no cemitério lá da aldeia, mas eu decidi mandar fazer este sem me passar pela cabeça que pouco depois viria para aqui desterrado. Ironias da vida...ou da morte...
- Posso chamar-te avô?
- Claro que sim, meu neto! – anuiu, satisfeito, o Serafim.
E continuou:
- E tu? Que idade tens?
- Sou muito novo! Nem sequer sou casado. Tenho trinta anos e morri num acidente de automóvel – falou o Lúcio.
- Muito novo, mesmo! – fez uma pausa e continuou o que já era só ossadas – Todavia, por sádico que pareça, devo confessar-te que fico satisfeito por ter aqui uma companhia. Há quarenta e sete anos que estou sozinho. Têm-me valido uns tipos aqui das campas do lado e de trás com quem consigo conversar quando há silêncio.
- Mas tu não és um esqueleto? – inquiriu o Lúcio – Então como consegues falar?
- Ahh...pensavas que só tocava castanholas com os maxilares? Esquece! Foi uma piada. Agora a sério: falo porque está aqui a minha alma. Não subiu aos céus nem desceu aos infernos. Está aqui. E a tua também está aí contigo – explicou o velho.
- Eu bem me parecia, mas estou com comichões pelo corpo todo e com a conversa ainda não prestei muita atenção a certas coisas.
- Sabes o que te provoca as comichões? É a decomposição do teu corpo. Quando fores só esqueleto ficas aliviado – disse o Serafim.
- Estou surpreendido com isto tudo... Olha, avô! Mas não se consegue ver nada?
- Aqui não! Está escuro. Mas aqueles cuja alma pode sair do caixão podem ver e dão grandes passeios. Às vezes vêm até aqui conversar um bocado com os que cá foram sepultados, mas preferem ir visitar os familiares e conhecidos vivos embora não consigam comunicar com eles. Limitam-se a observar. E há uns fanáticos que passam as noites nos clubes de strip-tease e noutros locais que nem digo.
O jovem morto estava estupefacto:
- Nunca pensei que isto fosse assim! E tu não podes sair?
- Infelizmente tive a má ideia de fazer o jazigo para não levar terra. Assim, o caixão é revestido a chumbo, a madeira não se desfaz e eu, ou a minha alma, estou aqui encurralado. E tu também não vais poder sair – explicou o avô.
- Mas que chatice! Se pudesse sair era muitíssimo mais interessante.
- Mas não podes. Paciência!
- E não podemos pedir a essas almas que andam na boa vida para nos darem informações do que acontece lá fora? – quis saber o Lúcio.
- Sim, podemos! Mas eles não nos ligam muito. São uma espécie de elite.
- Quer isso dizer que os mais pobres, os que estão na terra, são os mais livres e poderosos depois da morte? – perguntou o jovem.
- Digamos que, de um modo geral, é assim!
O morto por acidente ficou calado por uns momentos e depois mudou de assunto:
- Então, se tu morreste em 1960, não deves saber quasi nada dos avanços que houve nas ciências e nas técnicas, nos últimos cinquenta anos. Nem dos acontecimentos históricos...
- Sei algumas coisas porque um dos mortos aqui do lado tinha cinquenta e tal anos quando para aqui veio e só cá está há uns oito ou nove meses! Mas tu podes contar-me muito mais.
- Terei muito gosto, avô!
- E também me vais contar tudo sobre a família. Os meus descendentes e a minha mulher Margarida. Ela casou outra vez?
- Não! A avó nunca mais casou – esclareceu o neto.
- Gosto de saber isso! – disse o Serafim, satisfeito.
E depois de uma pausa:
- Sabes uma coisa? Quando abriram a tumba para te sepultar, o teu caixão bateu com força no meu e como entrava luz eu pude verificar que há uma ruptura no esquife. Portanto fiquei com a esperança de poder sair desta prisão.
- Mas isso seria óptimo! – exclamou o Lúcio – E podias também libertar-me?
- Temo que não seja possível abrir qualquer brecha no teu. Lembra-te que eu sou imaterial. Ainda não percebi como consigo ter os sentidos activos; parece incoerente, não é? Mas são os mistérios da morte...ou desta outra vida, para falar com mais rigor.
- Mas podes tentar, avô! E se saíres daí como é que depois sais do túmulo?
- Penso que não será difícil. Os que estão cobertos de terra conseguem passar pelas porosidades do terreno. Mas se chover muito e estiver tudo empapado tem dificuldades. Algumas almas já saíram e quando regressaram tiveram de esperar vários dias porque entretanto começou a chover muito e não conseguiram entrar.
- Então tu deves poder sair. Quando experimentas? – quis saber o Lúcio.
- Quem esperou quarenta e sete anos pode esperar mais algumas horas. Estou a gostar de falar contigo.
- Oh avô! Desde que me passei ainda não dormi nem tenho sono. Quando é que durmo? – questionou o recém-chegado.
- Agora fizeste-me sorrir. Nós não dormimos! – esclareceu o velho habitante do jazigo.
- Então isto deve ser muito chato quando não se tem com quem conversar – disse o neto, desalentado.
- Pois é! Mas como temos toda a eternidade pela frente, não há pressa nem razão para nos irritarmos. Ainda vais aprender a viver esta nova situação.
- Oh avô! Não queres tentar agora sair daí?
- Calma! Fala-me dos membros da nossa família que ainda estão na primeira vida. Além da minha mulher Margarida e do meu filho Jaime não conheci mais ninguém. Ahh...esquecia-me dos meus pais e do meu irmão...
E o Lúcio recomeçou a falar
- Esses já morreram e estão sepultados na aldeia. Lá na casa há ainda a minha mãe Ana e a minha irmã Lucinda que tem vinte e sete anos. E são estes os teus descendentes. É uma família pequena.
- Se sair daqui vou vê-los. Onde moram? – perguntou o Serafim.
- Numa casa antiga que era da vovó e foi restaurada. Penso que foi onde tu viveste, aqui na cidade.
- Óptimo! Assim sei lá ir facilmente. Agora já está escuro, mas mal o dia clareie vou tentar escapar-me daqui de dentro.
E a conversa continuou durante toda a noite.
O Serafim chegou mesmo a apresentar o seu neto aos vizinhos com quem conversava habitualmente. Durante essas horas nocturnas o silêncio no exterior da tumba era normalmente maior e mais fácil trocar palavras.
Quando começou a ouvir-se mais barulho, o avô disse:
- Ouves o som de carros? Quando se atinge este nível de ruído é sinal de que já é dia. É agora que vou tentar sair daqui.
Ao fim de algum tempo:
- Lúcio! Encontrei a fissura no chumbo e na madeira e estou a conseguir...
- Força, avô!
E logo a seguir:
- Consegui! Consegui! Graças aos tipos que fizeram com que a tua urna batesse na minha. Uns brutos simpáticos.
- Parabéns, avô!
- Agora vou tentar escapulir-me lá para fora.
E não demorou muito que o mais novo hóspede do sepulcro ouvisse:
- Já cá estou! Isto está cheio de ramos de flores. Eu sei que são do teu funeral mas até parece que foram aqui colocadas para me saudar – disse, feliz, o Serafim.
E concluiu:
- Vou passear pela primeira vez. Até logo, meu neto!
- Até logo, avô!
A viagem até à que fora a sua casa em tempo de vida foi lenta porque tudo era novo e diferente. Mas conseguiu lá chegar ao fim de quasi três horas a olhar não só para tantas novidades mas também para coisas antigas de que se lembrava.
Entrou na habitação e, conforme a percorria, ía falando para si mesmo:
- Aquele deve ser o meu filho Jaime. Deixei-o com dez anos e já está velhote. E aquela deve ser a Ana, a mulher. Teve bom gosto: saiu ao pai! Mas onde estará a minha Margarida?
Entrou num quarto onde pôde observar uma senhora idosa, vestida de negro e estendida sobre a cama.
- É ela, a minha Margarida!
Olhou durante uns largos segundos e exclamou:
- Mas está morta! Deve ter sido com a comoção do passamento do neto. Ainda é bonita apesar de ter oitenta e um anos.
E falou para ela:
- Margarida, meu amor! Vim-te buscar para passarmos a eternidade juntos.
A recém-falecida ouviu e perguntou, intrigada:
- Mas quem é?
- Sou eu, o teu marido Serafim! Tu não me podes ver mas eu ainda posso ver o teu corpo. Continuas linda, minha Guida...
- Oh! Mas eu não te vejo...
- Pois não! Quem está aqui é só a minha alma, invisível.
- Mas a minha não pode sair daqui, parece-me! – disse a Margarida.
- Pois não! Estarás aprisionada no teu corpo durante alguns dias.
- E como soubeste que eu tinha morrido?
- Humm...é uma história curiosa. Depois conto-ta. Agora vou ver melhor a casa e as pessoas que cá estão. Daqui a pouco virei fazer-te companhia. Até já, minha querida!


publicado por António às 15:00
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Sexta-feira, 24 de Agosto de 2007
Memórias do fundo do baú
Nasci no Porto, no dia de Reis do ano de 1949.
Entrei para a primeira classe no dia 7 de Outubro de 1955.
(Sim! As aulas da primária começavam sempre nesse dia)
Tinha seis anos, mas pouco faltava para fazer sete.
Legalmente não me podia matricular mas alguma intervenção muito pouco divina permitiu que começasse a aprender as primeiras letras e números ainda com seis anos.
Aliás, eu até já sabia umas coisas pois o meu pai fez questão, uns meses antes, de me comprar uns cadernos para eu ir copiando algarismos e letras e não sei mais o quê para depois fazer boa figura na escola.
Certamente que os pedagogos ficarão escandalizados com tal procedimento mas o facto é que não me parece que tal avanço forçado me tenha prejudicado. Teve vantagens? Confesso que não sei.
 
Mas o que se passou entre estas duas datas marcantes?
Tinha eu dois anos quando, em 31 de Maio de 1951, nasceu a minha irmã.
O acto ocorreu em nossa casa (era alugada, mas façamos de conta que era da família), com a assistência de uma parteira (D. Maria Pereira, se bem me lembro) e da minha tia Minda (de Arminda), ainda solteira, que viera ajudar a mana.
Lembro-me como se fosse hoje!
De factos anteriores só tenho lembranças difusas, mas do nascimento da Nandinha as imagens são de uma clareza total.
Tarde de sol. Quando chegou o momento que entenderam ser apropriado mandaram-me para casa da vizinha, a velha D. Maria Caldas, senhora fina que vivia só embora o seu filho Agostinho morasse na mesma rua de Oliveira Monteiro e não muito longe. Sentaram-me no parapeito de uma das duas janelas que a casa da velhota tinha com as pernas a pender no lado exterior.
E a paciente viúva lá me foi contando coisas para me entreter.
De repente apareceu a empregada (criada ou sopeira, como se dizia na época), a Rosa, a quem chamávamos a Rosinha dos Limões, a dizer:
- Nasceu uma menina! O menino Toninho tem uma maninha!
Fiquei rejubilante!
Mas só tive autorização de regressar a casa depois de ter sido dado o banho à minha irmã e de todos os outros trabalhos estarem concluídos.
Todos gabaram o encanto do bebé por contraste com o ranhoso, tinhoso, amarelo e meio vesgo que fora eu ao nascer.
Quando o meu pai regressou a casa, não ficou muito satisfeito por ter nascido uma rapariga. Ele queria outro moço (acho que não tinha grande confiança no futuro do que já tinha). Mal sabia que aquele ser tão rosado e lindo seria mais tarde a menina dos seus olhos e uma verdadeira Maria-rapaz.
Lembro-me de que nos tempos seguintes ao parto, após os almoços e enquanto a minha mãe se recolhia ao quarto para dar o peito à recém-nascida, me aninhava debaixo da Rosa que ficava na cozinha a lavar a loiça e ía subindo com os deditos pelas pernas da empregada até que sentia uma humidade que muito me excitava e dizia baixinho:
- Ó Rosa! Estás toda molhada! Fizeste xixi?
- O menino esteja quieto! Olhe que eu digo à mamã...
Mas ria-se. Parece que gostava!
Penso que foi assim a minha pré-iniciação sexual. Precoce, não?
 
Foi durante o período dos quatro anos seguintes que comecei a ir passar umas temporadas para casa das irmãs da minha mãe.
Eu adorava e para a Leta (de Julieta) era um alívio pois ficava mais à vontade para cuidar da pequenita.
 
Umas vezes ía para a pensão Meira (hoje hotel e ainda nas mãos da família), em Vila Praia de Âncora, para junto da tia Bela que era a mais velha das quatro manas e vivia com o tio Mão (de Simão) e os três filhos: Jorge, Zé (já falecido) e Nando. Curiosamente, eles e eu tínhamos diferenças de idade de cinco anos.
 
Outras ía para casa da Maria José (também conhecida por Mariquinhas ou Quinhas) que vivia com o tio Ribeiro (que era viajante e poucas vezes estava em casa); eram os meus padrinhos e tinham duas filhas: A Mimi (Julieta, como a minha mãe) e a Fininha (Delfina). Mais tarde, tinha eu oito anos, tiveram um rapaz: o Tone-Zé. Viviam muito perto da pensão e eu passava mais tempo com os meus primos que na casa que quasi só tinha mulheres,
A tia Bela faleceu em 2005 com noventa e dois anos que é a idade que tem hoje a única sobrevivente do quarteto – a minha madrinha. Infelizmente tem a doença de Parkinson que lhe afecta o equilíbrio, a mobilidade e ainda a fala.
Fui vê-la neste mês de Agosto e telefono-lhe duas vezes por semana. Já não consegue falar comigo: delega na Fininha.
A Bela e a Quinhas viviam a menos de cem metros uma da outra mas volta e meia estavam zangadas. Feitios!
 
Entretanto, a tia Minda, que vivia numa casa ao lado da Maria José (todas elas na rua principal que era, nem mais nem menos que a Estrada Nacional 13, então com pouco movimento de automóveis), casou com o tio Tone de Valença que era seu primo direito.
E o jovem Tone, Tone Castilho ou Toninho, como me chamavam, começou a ir passar umas temporadas também àquela vila do Alto Minho.
Viviam junto à estrada para Monção, logo após e desvio para o Monte do Faro, numa casa sem abastecimento de água nem saneamento básico. Nem fossa séptica havia; só fossas secas. Viviam com o pai dele, o tio João, um velhote muito buçal que nunca lavava os dentes e faleceu já com provecta idade mas mantendo a dentadura natural intacta.
Tinham uma mercearia, um armazém de sal e alguma terra de cultivo, com uma pequena área isolada onde se desenvolviam flores várias.
Num ponto mais remoto da propriedade havia um grande tanque onde a tia lavava a roupa e, nos pequenos charcos que se formavam junto do lavadouro, viviam muitas rãs que eu me entretinha a ver saltar daqui para ali.
Mais tarde tiveram uma filha, a Cecília (Cila) e eu deixei de ir para lá.
Recordo particularmente os jogos de cartas (com baralhos exibindo as sugestivas figuras dos naipes espanhóis) que fazíamos nas noites de inverno com a braseira acesa, mas também dos jantares pela fresca, sob as vinhas que sombreavam a zona exterior à cozinha.
Tenho pena que já nada disso pertença à família.
 
Estas ausências solitárias da casa do Porto ocorriam fora do período de praia (que era de cerca de três meses) e das épocas festivas, nomeadamente o Natal e a Páscoa, quando toda a família se deslocava para a vila sita uns dezasseis quilómetros a norte de Viana do Castelo. O meu pai só o fazia parcialmente porque tinha de ganhar o dinheirinho para sustentar a família.
 
Tenho de reconhecer que nunca senti saudades (excepto uma vez em que me lembro de ter vertido umas lágrimas à noite, já na cama). Os meus pais muitas vezes não me queriam deixar ficar lá longe mas, perante a minha insistência e a dos meus tios e primos, acabavam por anuir, embora tristes.
Muitos episódios poderia aqui verter. Muitas peripécias contar.
 
Uma vez estava na casa da minha madrinha, a Quinhas.
Numa tarde, pouco depois do almoço, fui com a minha tia vê-la a lavar alguma roupa no tanque que havia no quintal. Vestia um bibe e, como qualquer miúdo normal, procurava mexer na água.
E a Maria José avisou-me:
- Olha que se molhares o bibe apanhas uma sapatada no rabo.
Retive a ameaça mas continuei a brincar com a água. Pouco depois a madrinha retirou-se e disse-me:
- Agora anda cá para dentro para a minha beira.
Fiquei mais um pouco a entreter-me até que molhei uma ponta do bibe.
O aviso soou-me de novo como se a tia ainda ali estivesse:
“Olha que se molhares o bibe apanhas uma sapatada no rabo”.
E, como mais vale prevenir do que remediar, resolvi procurar sorrateiramente um sítio onde pudesse esperar que a roupa secasse.
E assim me escondi num canto entre a cómoda e a parede, no quarto dos meus padrinhos.
Passado algum tempo comecei a ouvir a Quinhas a chamar por mim. Mas o instinto de defesa dizia-me para continuar ali, quietinho e caladinho.
A terceira das irmãs da minha mãe estava cada vez mais aflita e foi chamar a D. Laura, uma viúva vizinha que pertencia a família requintada.
E lá andaram as duas a vasculhar tudo o que era sítio ao mesmo tempo que, progressivamente de forma mais angustiada, íam chamando por mim: estiveram na rua e no quintal. Falaram que podiam ter sido uns ciganos que tinham passado por ali há pouco tempo que me teriam raptado. A minha madrinha chorava. E eu ía apalpando o bibe: o malvado nunca mais secava.
Até que ao fim de bastante tempo, seguramente mais de uma hora, as duas entraram outra vez no quarto e puseram-se de gatas.
- Ó Mariquinhas! – chamou a senhora – Estou a ver ali qualquer coisa.
A “qualquer coisa” era eu!
E assim me descobriram.
Claro que ouvi uma reprimenda e tive de me justificar com o medo de apanhar uns açoites por cauda da roupa molhada.
Mas livrei-me deles!
 
Também na pequena casa térrea do Porto, perto da Carvalhido, com o número de correio 1015, houve peripécias.
Paralelamente à rua, já então movimentada e com os carros eléctricos (era o 6 para o Monte dos Burgos, se não estou errado) a passarem constantemente, desenvolvia-se a um nível inferior um quintal para o qual se descia por uma longa e razoavelmente larga escada de granito. Lá em baixo costumava andar de triciclo num espaço cimentado que ficava ao fundo das escadas e junto de uma porta que dava acesso a uma cave onde abundavam os ratos.
Uma vez pus-me a pedalar no patamar do cimo das escadas. Por azar inexplicável deslizei e fui mais o triciclo pelas escadas abaixo até ao tal espaço mais liso.
A minha irmã, que ao tempo dizia as primeiras palavras, foi a correr ao escritório onde estava o meu pai e disse:
- Papá! Toninho...
E fazia girar os antebraços, um em torno do outro em frente ao peito, para querer significar que eu rolara.
- Papá! Toninho...
O meu pai percebeu a mensagem gestual e precipitou-se para as escadas.
Lá estava eu no fundo, ainda embrulhado no pequeno velocípede de três rodas e a chorar.
Mas não fiz qualquer ferimento de gravidade; o amor-próprio foi o mais atingido.
 
Não posso deixar de fazer referência ao facto de os telefones ainda serem pouco comuns naquela altura. Mas o meu pai, profissional liberal, tinha necessidade de ter um. Lembro-me que era preto e tinha o número 62411. Para as chamadas locais bastava discar o número pretendido. Para as interurbanas era necessário dar a uma manivela para chamar uma telefonista da central sendo o número desejado pedido oralmente. Passado mais ou menos tempo o telefone tocava e a operadora anunciava que já se podia falar com o assinante solicitado. Este serviço público pertencia então aos CTT – Correios, Telégrafo e Telefones.
 
Na outra extremidade do quintal da casa de Oliveira Monteiro vivia uma família cuja senhora era conhecida como “a bruxa”. Parece que tinha um negócio montado de atendimento a clientes mais incautos perante os quais exibia os seus dotes divinatórios.
Um dia, disseram que tinha morrido uma das filhas d’ “a bruxa”. Era uma rapariga com menos de dez anos.
De minha casa pude ver ao longe e através de uma porta aberta, um caixão rodeado por candelabros com velas. Foi o meu primeiro contacto com a morte.
 
E havia as visitas da minha avó paterna, de uma outra senhora de idade avançada, sempre vestida de preto e com um chapéu com uma rede na frente do rosto, a D. Adelaide, de um tio da minha mãe, o padre Fernando, que volta e meia tinha problemas de saúde e ficava lá em casa dormindo com os ratos na cave, um irmão do meu avô materno, o tio brasileiro ou tio Manuel que tinha a família no outro lado do Atlântico (penso que em Poços de Caldas, no estado de Minas Gerais) mas que vinha passar umas temporadas a Portugal onde, apesar de ser já idoso, dava satisfação ao seu grande desejo por mulheres: um magricela, mas um garanhão.
 
Não devo esquecer o Zé, um pouco mais velho do que eu e filho do Pinto, cabeleireiro de senhoras, que vivia e trabalhava em frente, que era o meu parceiro de brincadeiras.
Nunca mais o vi ou soube alguma coisa dele.
 
Se procurasse mais coisas no fundo do baú das memórias certamente outros acontecimentos mais ou menos interessantes viriam alongar este repositório.
Mas vou ficar por aqui...
 
Nota: Solicito que não ousem chamar-me de Toninho porque arranjarão um inimigo para o resto da vida: percebido?


publicado por António às 23:10
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Quarta-feira, 22 de Agosto de 2007
Fim da Pausa
Já voltei a escrever!

Muito brevemente (o mais tardar no próximo fim-de-semana) começarei a colocar aqui novos textos.
Espero continuar a ter a vossa presença amiga e os vossos comentários.

Obrigado e até lá!



publicado por António às 13:03
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Domingo, 19 de Agosto de 2007
...e assim terminou o Concurso de contos
No dia 4 de Junho passado coloquei on-line um post em que publicitava um Concurso de contos promovido pelo site
“Ora, vejamos...” (http://horabsurda.com/moodle) do Henrique Sousa
e que contou com o apoio da Otília Martel, da Heloísa BP e da Ana Paula Pereira.
 
Concorreram 21 autores com um total de 67 contos.
 
As pontuações foram atribuídas por um júri constituído por cinco membros (Heloísa B P, Ana Paula Pereira, Otília Martel, João Baptista do Lago e Firmino Mendes)
 
Apresentei-me ao concurso com dez contos (todos eles já anteriormente publicados nos meus blogs) que obtiveram as seguintes pontuações (para um máximo de 50 pontos) e prémios:
 
História de uma Virgem – 39 pontos – 3º lugar ex-aequo
(http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt/6215.html#comentarios)
 
Uma noite de Natal – 37 pontos – Menção honrosa
(http://eusoulouco.blogspot.com/2006/12/histrias-curtas-i-uma-noite-de-natal.html)
 
No Olimpo – 33 pontos – Menção honrosa
(http://eusoulouco.blogspot.com/2005/11/no-olimpo-reedio.html)
 
O crime perfeito – 33 pontos – Menção honrosa
(http://eusoulouco.blogspot.com/2007/01/histrias-curtas-ii-o-crime-perfeito_02.html)
 
Pânico – 32 pontos
(http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt/5298.html#comentarios)
 
Noite de trovoada – 32 pontos
(http://eusoulouco.blogspot.com/2007/01/histrias-curtas-vi-noite-de-trovoada.html)
 
O mundo visto duma janela – 31 pontos
(http://eusoulouco.blogspot.com/2007/03/histrias-curtas-xi-o-mundo-visto-duma.html)
 
A cilada – 30 pontos
(http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt/2360.html#comentarios)
 
Falta de água – 28 pontos
(http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt/1627.html#comentarios)
 
Viajando à boleia – 26 pontos
(http://eusoulouco.blogspot.com/2007/01/histrias-curtas-v-viajando-boleia.html)
 
 
(foram premiados 6 contos com o 3º lugar e 16 outros com Menção Honrosa, o que quer dizer que foram destacados 24 dos 67 contos concorrentes)


publicado por António às 20:40
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