Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Quarta-feira, 26 de Agosto de 2009
Verões no Minho, junto ao mar (parte III e última)

As noites de verão eram muito interessantes e foram evoluindo ao longo dos tempos.

Como inicialmente quasi ninguém tinha carta de condução e muito menos carro, eram passadas na conversa, sentados algures, ou a andar de um lado para o outro. Contar anedotas era um passatempo muito comum. Quando havia algum novo veraneante era quasi certo ir à “caça dos gambuzinos” para as dunas. Jogar bilhar livre, ping-pong ou às cartas na Assembleia Ancorense era também habitual. E as sessões de cinema no Cine-Teatro dos Bombeiros Voluntários eram frequentes.
Duas vezes por semana, quartas e sábados, havia baile na Assembleia. Era preciso ser sócio ou pagar a entrada. O salão de dança tinha a forma de um T e encostadas às paredes havia inúmeras cadeiras ocupadas pelas meninas e pelas mamãs, todas elas muito bem vestidas. Também os rapazes se engalanavam com fato e gravata. Na zona mais afastada estava um conjunto a tocar as músicas mais modernas que sabiam, mas também muito tango e muita valsa. Um desses agrupamentos musicais, o Conjunto Alegria, era liderado pelo Quim Barreiros que já primava por ser vocalista e tocar acordeão com gabarito.
Eu lá convidava umas pequenas para dançar. Uma das minhas favoritas era a Laidinha, moça gira e pequenina que se deixava conduzir muito bem. Este estilo durou até meados dos anos 60. Depois, e sobretudo graças à música dos Beatles, os reportórios mudaram. Começou a dançar-se separado e as indumentárias passaram a ser muito simples. Estávamos numa época de viragem na sociedade portuguesa, e não só.
Também as famílias mais finas começaram a deixar de ir aos bailes e estes tornaram-se menos e pior frequentados para tristeza do Barata, o velho guardador de tão estimado espaço.
O facto de estarmos mais velhos e de os automóveis proliferarem, fizeram com que as noites em grupos se convertessem muitas vezes em noites de passeata até onde houvesse festas ou boîtes, como se chamavam as actuais discotecas: Caminha, Viana, Afife eram destinos habituais. A própria Assembleia criou uma pequeníssima boîte no local onde estava uma mesa de ping-pong, numa tentativa pouco sucedida de se adaptar aos novos tempos. Logo a sul de Vila Praia nasceu um interessante espaço com alojamento, restaurante, bar e esplanada, zonas de desporto e muito verde, que funcionava essencialmente de dia: a Sereia da Gelfa.
Cada vez mais a praia de Moledo se foi tornando a mais requintada de toda a zona.
Na área de vivendas havia o seleccionado Ínsua Clube que também fazia os seus bailes de gente fina.
Uma vez fomos vários até lá, já tarde, por isso nos deixaram entrar de borla e, não sei dizer porque carga de água, a rapaziada começou a roubar tudo o que eram troféus, cinzeiros, palamenta, copos, enfim… E viemos todos com esse precioso espólio para Âncora onde o material foi exposto nos bancos do Largo. Eis que surgiu o sempre sensato Décio que não tinha ido a Moledo. Ao ver aquilo e ao inteirar-se da sua proveniência, fez um tal discurso que desde logo ficou assente que tudo iria ser devolvido no dia seguinte. Foi designado um desgraçado para ir de baraço ao pescoço, qual Egas Moniz, levar de volta o produto do roubo. E assim se cumpriu.
Na Assembleia Ancorense havia um grupo que jogava póquer com frequência e com jogadas bem altas: o Samarra, o Marques Mendes (pai do conhecido político do PSD), o Carlos Júlio e um tal Brito eram alguns dos viciados.
 
Obviamente que não podiam faltar os famosos amores de praia (nem sempre enterrados na areia).
Devo dizer que, dentre todas as pessoas que referi, as relações eram muito mais de amizade, companheirismo e brincadeira do que de arroubos mais ou menos amorosos. Que me lembre, só o Tó Enes viria a casar com a Fátima Guerreiro. O Zé Amoedo casou com a Judite, minha prima afastada, mas penso que eram ambos de Monção.
Eu nunca fui muito dado a namoricos à moda antiga. Isso de andar de mão dada, dar uns beijinhos e depois não poder fazer as coisas que me apetecia nunca foi a minha especialidade.
Mas quero recordar aqui a Maria Clotilde, de Lisboa, filha de um empreiteiro natural de Seixas (localidade a norte de Caminha), com quem namorisquei: eu tinha dezassete anos e ela, mais três. Era bonita e com um bom corpo mas, nitidamente, queria apanhar um tipo para casar o que me fez jogar à defesa. No ano seguinte apareceu lá casada e grávida de gémeos. Do que eu me safei, hein?
Dois ou três anos depois conheci as irmãs Fátima e Lurdes. Eram de Oliveira de Azeméis e estavam alojadas em Seixas (outra vez Seixas) na casa da avó.
A primeira era uma morena lindíssima e tinha um corpo muito bem torneado. Pois lá namoriscamos. Fui várias vezes de comboio a casa dela, mas também este amor ficou enterrado na areia.
Era muito novo e ainda não estava minimamente interessado em ter uma relação duradoura. Achava, e continuo a pensar ter razão, que primeiro devia acabar o curso, fazer a tropa e gozar bem a vida. Depois pensaria em arranjar uma mulher para o resto da vida. E assim aconteceu…
 
Durante vários anos realizou-se um torneio de futebol de salão.
A equipa vencedora era sempre a do Iogurte Veneza, patrocinada pelo Luis Rodrigues, mas lembro-me das dos Barocas, do Américo Henrique e sobretudo da Casa das Malhas, patrocinada pelo Cerqueira de Braga, que só participou uma vez, mas de cujo plantel eu fazia parte com o Álvaro Baixinho Filho, o Flautas, o Quim Barreiros e mais alguns, tendo o Álvaro Meira como treinador. No primeiro jogo ganhamos 3-2 e eu marquei dois golos. No segundo apanhamos 5-0 ou coisa parecida. Entretanto, e dado que o piso era pouco regular, de terra batida e propício a ferimentos, o meu pai proibiu-me de jogar temendo que me magoasse. E assim terminou uma carreira que talvez me levasse ao Real Madrid.
 
Esta fase dos meus verões em Vila Praia de Âncora terminou em 1972.
No ano seguinte, já na Armada, fui lá passar uns dias em Setembro.
Em 1974 e 1975 estava em África.
Voltei no ano imediato.
Já tinha vinte e sete anos e a maioria da malta do período sobre o qual já muito escrevi atrás tinha desaparecido ou fazia uma incursão de um ou dois dias, alguns já casados e com filhos.
Meti-me em novo grupo com a Emília (Mila), a irmã Alda e mais moças de Valença, Monção e Melgaço, da simpática galega de nome Eva (a Evita) e dos seus irmãos. Uma delas, cujo nome não recordo, tinha um amor sem limites pelo Mário Pedra de que já falei.
Nessa altura pontificava um outro grupo em que se destacavam o Tó Ferreira e o Luizinho Gomes, filho do comerciante com o mesmo nome, e que era visivelmente homossexual. Na época, a homofilia não era encarada da forma permissiva como o é hoje.
Foi também em 1976 que lá apareceu o Jorge Machado. Foi-me apresentado pela minha irmã e estava lá por causa dela, notoriamente.
Eles e uma prima de Valença, a Cila, passaram também a ser companhias assíduas. Casaram dois anos depois, geraram um casal e hoje estão divorciados.
 
Em 1978 conheci duas pessoas do sexo feminino, a Maria Fernanda (da minha idade, divorciada e com um filho que ficara em Leça do Balio com os avós) e a prima Dalila, do Porto, com dezoito anos, que estavam lá pela primeira vez. Com elas costumava andar um rapaz chamado Vítor mas, pouco depois, eu juntei-me ao grupo e, além do convívio na praia, muitas noites íamos no meu Fiat 127 branco (o primeiro carro novo que comprei) a algum local fora de Âncora, não sem antes nos reunirmos no Kitari, um cafezito pequeno mas simpático que entretanto abrira no Largo.
No ano seguinte não fui para a praia pois a 29 de Agosto casei com a Maria Fernanda.
Dessa vez o amor não ficou enterrado na areia.
Depois, em 1980, 1981 e 1982, fui com a minha mulher e o meu enteado, o Mário Rui.
Em 1983 e 1984 já levamos o novo membro da família: o meu filho Fernando Miguel.
No primeiro desses cinco anos estivemos alojados no Hotel Meira e nos restantes dormíamos no andar da Tia Bela da rua do Sol Posto e comíamos no restaurante da Tilde, o Atlântico, na rua Cândido dos Reis.
 
E nunca mais passei nenhum verão em Vila Praia de Âncora…             


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Terça-feira, 18 de Agosto de 2009
Verões no Minho, junto ao mar (parte II)

Quando tinha doze anos aconteceu o imprevisto: após quinze dias de doença galopante finou-se o meu tio Mão, com cinquenta e poucos anos. O seu primogénito, meu primo Jorge, passou a ser o responsável pelo negócio juntamente com a mãe (que demorou bastante tempo a recuperar do choque da morte do marido). O pai fizera obras, acrescentando um andar ao edifício e o filho, mais tarde, lograria a promoção a Hotel. Fez também melhoramentos por duas ou três vezes.

A Estrada Nacional 13 passava pela central Praça da República. Para norte tomava o nome de rua 5 de Outubro, para sul, o de rua 31 de Janeiro.
A Pensão ficava na primeira zona que referi. Também lá vivia, um pouco acima, uma outra irmã de minha mãe, a tia Zé, que era minha madrinha. A unidade hoteleira fazia esquina com a rua do Sol Posto onde, mais tarde, os Meira construíram um prédio com quatro habitações: uma para a mãe e as outras três para cada um dos filhos. Nesse troço da 13 havia a casa Portela, a dos irmãos Ramos e a do Luis Gomes, que vendiam roupas e fazendas, o café do Tirinho (o nome provinha de uma tentativa de suicídio por amor, disparando uma bala na boca, mas o resultado foi só ter ficado com a boca torta para sempre) e o do Luis, o talho da Anésia, a mercearia e a salsicharia do Cindo, a Pensão Miramar (muito fraquinha), a mercearia da Bina da Biandota, os Correios, a casa da Sarinha (de onde se podiam fazer ligações interurbanas e que muito desanuviava os CTT na época balnear), as alfaiatarias do Zourinha (Espincha) e do Zezinho, a garagem do Rocha, os bombeiros e o seu Cine-Teatro. Havia ainda a casa do juiz desembargador Morais Cabral e da mulher Maria Ângela (tinham um filho rapaz, o João Adelino e uma rapariga, a Tininha, que foi locutora da Rádio Portugal Livre, na Argélia, e já faleceu). Isto para não ser exaustivo…
Na rua do outro lado havia o barbeiro António “Poupa”, o posto da GNR, a casa de pasto Flora, o posto da Shell com o Ernesto gasolineiro, a casa do Dr. João, a do Dr. Mesquita e a do Luis Gomes e mais o que agora não recordo.
Nessa Praça principal, também chamada Largo, nascia a rua Cândido dos Reis que levava à “meia-laranja”, como já escrevi. Era lá, bem no coração da terra, que se realizava a feira semanal, às quintas, e se situavam a capela de Nossa Senhora da Bonança, padroeira da vila, o Café Central com a sua esplanada, a Farmácia do Brito e a Moderna, um talho, uma padaria (onde muitas vezes, lá pelas duas ou três da manhã, íamos ao pão quente), uma oficina de bicicletas do pai daquele que é hoje o bem conhecido Quim Barreiros, a Assembleia Ancorense, a Sociedade Ancorense (já na entrada da rua Miguel Bombarda que conduzia ao Calvário), a barbearia do Miro, a loja do Correia, a Capitania (que mais tarde deixou de haver em Âncora), a casa do Dr. Alfredo Pinto e nem sei que mais…
Após o falecimento do meu tio deixamos de ir para a Pensão e o meu pai passou a alugar uma casa durante o mês de Agosto. Todavia, enquanto andava no liceu e nos anos em que não havia exame final, eu ia para lá durante cerca de três meses, alojando-me na Pensão enquanto a casa de veraneio ainda não estava arrendada. Ficava muito moreno e gozava com os banhistas que chegavam, ainda com a tez muito clara.
 
Foi quatro anos depois do passamento do meu tio que se deu a grande viragem no estilo das minhas férias em Vila Praia.
Depois de ter concluído o antigo 5º ano dos liceus (dispensando de exame, diga-se, para saberem como era um aluno aplicado), no 6º fiquei na mesma turma de dois irmãos que conhecia de vista, quer do Alexandre Herculano, quer de Âncora: O Décio e o Zé Baganha que, no mês de Agosto, assentavam arraiais em Afife, terra da mãe e que ficava muito poucos quilómetros a sul da minha praia. Tornámo-nos amigos, começamos a estudar juntos no café Estádio e depois no Scala, na praça de Velasquez, no Porto (e aí me introduziram no vício do tabaco) e passamos a ser compinchas na praia da foz do Âncora. Como eles conheciam muitos veraneantes, eu rapidamente fui integrado num grupo.
Lá estavam o Zé Manel Capela (o loiro Zé Piroco) de Braga, o Zé Pardal da mesma cidade, o Luis Sampaio do Porto, o Hernâni (Licas) dos Arcos de Valdevez, o Zé Luis Rodrigues de Lisboa mas com origem monçanense, os seus primos Zé Antero e Vitorino (Vito) da mesma vila de Deu-la-deu Martins, o Carlos Jorge (filho do meu antigo professor de Matemática, Pedro Pinheiro Gonçalves que, infelizmente, estava limitado por uma trombose de que fora acometido) do Porto, o Carlos (Carlinhos maluco, ou Carlos Oliveira Duarte) de Lisboa, se bem me lembro, o Carlos Júlio de Ponte de Lima e meu colega de curso, os filhos e sobrinhos do “Samarra”, monçanense que viria a ser o Comendador Gonçalves Gomes (o Manel Campos, casado com uma filha do chefe do clã, o irmão Sebastião, e os herdeiros mais novos – Tó, Perfeita e Aida), os filhos do reitor do liceu de Guimarães (Isilda, Regina, Américo, António e Fatinha), o Manel Augusto, o Tó Enes, o João e a irmã, filhos de um médico em Esposende, o Manel Luis de Lisboa, que tinha uma gargalhada soluçante que contagiava toda gente especialmente nas sessões de cinema, o Zé Manel Puga de Monção, o Diomar e o Adélio de Ermesinde (este pouco andava com o grupo), o Camilo que jogava voleibol no Francisco de Holanda de Guimarães, etc.
Uma tarde, estava eu na marginal com o Zé Piroco quando ele disse:
- Ó pá! Já viste aquela loira ali nas dunas?
- Parece ser um borracho! – retorqui.
- Vamos lá!
E fomos. Quando estávamos mais perto o Piroco exclamou:
- Porra! É a minha irmã!
E era, de facto, a mana de onze anos do meu parceiro.
Retomando o fio à meada.
Fui conhecendo muita mais gente. Aliás, embora houvesse alguns grupos, todos falavam com todos.
Aqueles a quem chamávamos “copinhos de leite”: o Isaías e a irmã Luisa Finkelstein, o Zé António Salvado, o Guilherme Leal, a Julinha e os irmãos Luis, Mané e Laura, o Carlos Areias e a irmã Leonor, todos do Porto, a Guida e o mano Luis, irmãos do Zé Luis que já referi e filhos do sportinguista Luis Rodrigues que chegou a tentar levar alguns jovens para os lados de Alvalade (eu incluído, vejam bem!), as filhas do Zé Luis de Guimarães, homem da têxtil que faleceu prematuramente, e outros.
Havia o grupo do Américo Henrique, meu colega no liceu, que incluía o Henrique Nunes e o irmão, o Zé Fiúza e várias moças do Minho; o grupo dos anafados filhos dum empresário têxtil de Pevidém chamado Campos (um filho morreu com problemas cardíacos com pouco mais de vinte anos); o dos Cunha de Riba d’Ave (Lena, Bela, Lua, Pim, Nené, Paula…); as sobrinhas do Cerqueira, também de Braga e hóspede habitual do Meira, sendo que uma delas foi minha colega de curso, a Zé Cardoso. De referir um tipo um tanto solitário, o Mário Pedra de Valença, que viria a ser Presidente da Câmara daquela vila, tendo falecido precocemente aos quarenta e poucos anos de idade.
E muita gente de Âncora. O Nuno Mesquita, o João e o Rui Taxa e também o Carlos Pinto (um tipo porreiro que se tornaria esquizofrénico). Estes tinham a particularidade de ser filhos dos três médicos que viviam na terra: o Mesquita da Silva, o João Araújo e o Alfredo Pinto. O último viria a ser o Governador-Civil de Viana do Castelo à data do 25 de Abril. Também as filhas da Anésia, o Chico Presa, filho do dono da já referida fábrica da manteiga que bastantes anos depois viria a falir, o João Cunha, o Zé Carlos que foi jogador do Vitória de Guimarães, o Álvaro Meira, enorme talento de artista plástico nunca aproveitado, o Zé Pedro Neves (Flautas), o meu primo Fernando Meira que namorava a Teresa, uma rapariga de Viana com quem ainda hoje é casado, etc.
 
Não posso esquecer duas figuras típicas: o Engenheiro e o Professor de Letras. O primeiro era um sujeito sem idade bem definida pois levara uma vida complicada. Fumador, beberrão e contrabandista de baixa estirpe, apresentava o rosto e as mãos muito envelhecidas, mas o cabelo ainda era bastante e penteado para trás com brilhantina ou qualquer outro produto oleoso. Vestido sempre com muita roupa, suja e mal arranjada, escondia assim a sua magreza. Tinha um ar desprezível mas, vá-se lá saber porquê, caiu na graça de muita da rapaziada. Talvez porque contava histórias interessantes, talvez porque tinha algum sentido de humor. Era vê-lo sentado na esplanada do café Central a pedir um chá preto ao empregado (alguém se encarregaria de o pagar). E pouco depois estava na mesa um pires, uma colher, um pacote de açúcar e uma chávena cheia de um líquido negro que não era senão vinho tinto. Ele pegava na asa com todo o requinte, segurando-a entre o indicador e o polegar e com os outros dedos afastados, levava a bebida aos lábios e dizia:
- Está muito quente! – e ia soprando suavemente para dentro do recipiente fingindo arrefecê-lo.
O meu pai, quando eu falava nele, costumava dizer:
- Andas com muito boas companhias!
Uma noite, numa altura em que já havia mais malta com carro, guiou-nos a uma festa num pequeno lugarejo da serra, São João d’Arga, que era basicamente uma pequena praça quadrada com habitações típicas em três dos lados, todas elas mais ou menos iguais, com um piso, e no centro havia uma minúscula capela. Em torno dela andavam de joelhos ou rastejando os penitentes, sobretudo mulheres. Tudo isso me fez lembrar os tempos medievais. Mas havia muita mais gente do que eu poderia imaginar (sobretudo imigrantes). Parece que os aldeões das redondezas depois dormiam ao relento e nove meses mais tarde a natalidade tinha um pico.
O segundo (o Professor de Letras) era um rapaz só um pouco mais velho do que nós.
Era alto e magro, muito moreno, com o cabelo assaz encaracolado e andava sempre muito bem vestido e a tentar engatar toda a mulher, mais nova ou mais velha, solteira, casada, viúva ou divorciada que lhe avistasse. Não trabalhava e parece que vivia à custa da mãe que se orgulhava de que o seu filho fosse tão popular. E era-o, sem dúvida!
O nome devia-o ao facto de ter conquistado uma moça das redondezas havendo-lhe dito que trabalhava como professor de letras. O pior foi que alguém avisou o pai da rapariga de quem ele era, realmente, e numa das suas idas a casa da namorada quem apareceu foi o potencial sogro que lhe deu uma valente sova.
Ficou para sempre conhecido como o Professor de Letras, embora se chamasse Jorge.
Quando, mais tarde, tinha um carro, aliás cedido por uma fulana que o compensava assim de momentos de prazer, à noite circulava com ele lentamente pela Avenida com as luzes interiores acesas para se fazer notado.
Um castiço!               


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Quarta-feira, 12 de Agosto de 2009
Verões no Minho, junto ao mar (parte I)

Cerca de dezasseis quilómetros a norte da foz do Lima desagua no Atlântico um pequeno rio que nasce na serra d’Arga: o Âncora.

Na margem direita desenvolveram-se uma zona piscatória e outra balnear que fizeram com que surgisse Vila Praia de Âncora.  
É a terra onde nasceu, cresceu e viveu (e vive) uma parte da família de minha mãe e que está indissoluvelmente ligada à minha vida.
Em 1949, só com meio ano de idade, comecei a ir para lá passar o verão, ou uma fracção dele, e a fruir o sol, a água, o iodo e tudo o mais dessa estupenda praia cujo areal era muito ocupado por veraneantes na zona norte rio, do lado onde cresceu a vila, mas que tinha um grande extensão de areia para sul da foz, desocupada, que terminava nas rochas que antecediam as ruínas do forte do Cão. Mais pelo interior, e paralelamente ao mar, estendia-se nessa margem sul uma faixa dunar travada a nascente pelo pinhal da Gelfa. No final, num espaço em que já existia vegetação rasteira mas o terreno era ainda arenoso, fora construído um Sanatório, primeiro para doentes de tísica, mais tarde para quem padecia de males do foro psiquiátrico.
A areia era fina e branca.
O mar, na baixa-mar permitia que as pessoas nele avançassem mais de cem metros, sempre com pé, e deixava descoberta uma área de areia molhada que, naturalmente endurecida e alisada, era um chamariz para jogar futebol. Lá competiram amigavelmente, além dos normais veraneantes, jogadores de clubes importantes como Edmur, Caiçara e Ernesto do Vitória de Guimarães, António Simões do Benfica e Cesário do Sporting de Braga, entre outros, e que eram os ídolos daquele futebol estival.
Como todas as praias da costa ocidental, salvo aquelas viradas a sul como as da linha de Cascais ou as da zona de Setúbal (bem protegidas pelas serras de Sintra e da Arrábida, respectivamente), quando o vento norte começava a soprar tornava-as desagradáveis. Isso iniciava-se por volta da hora de almoço e terminava ao fim da tarde. Felizmente não acontecia todos os dias mas, quando se levantava a nortada, o melhor a fazer na praia era estar bem abrigado nas barracas.
Estas eram paralelepipédicas, quasi cúbicas, feitas de um pano de algodão amarelo suportado por uma estrutura ligeira em madeira. Eram alugadas às banheiras. Mas havia também outras mandadas construir particularmente. Essas destacavam-se por serem maiores e encimadas por uma pirâmide quadrangular, em tecidos também de algodão mas mais resistentes e com cores e padrões mais variados. Fosse qual fosse o modelo, a parte da frente dos toldos tinha uma pala que podia estar fechada, aberta ou em posições intermédias. As barracas dispunham-se paralelamente à avenida marginal (que descreverei mais adiante), voltadas para a água. No outro lado do rio havia também algumas, nos meus tempos de menino em quantidade diminuta mas, com o decorrer dos anos, o seu número foi aumentando. Durante muitos estios os meus pais alugaram as barracas até que, num qualquer verão, resolveram mandar fabricar uma grande.
Um outro senão: as temperaturas, habitualmente baixas, da água do mar.
Mas os banhistas, caras quasi sempre repetidas ao longo dos tempos, já estavam habituados e não era isso que os inibia de mergulhar e nadar na água salgada.
Havia o rio, pois então, com muito pouca profundidade e água bem mais quentinha mas, como ao tempo não havia saneamento básico digno desse nome e muito menos tratamento de esgotos, era o meio receptor dos ditos. Apesar dos apelos dos papás para que não fossem para o rio, a criançada não queria outra coisa. Valia que, quando a maré crescia, a água do Âncora junto à praia ficava salgada e limpa de imundícies. Também numa zona a montante da de descarga dos efluentes, num local do lado interior das dunas e para cima de uma grande curva do rio, se juntava muita gente para tomar banho em água limpa e com uma profundidade mais adequada para nadar. Chamávamos a essa zona, as Dunas ou os Caldeirões.
 
A marginar o areal estendia-se a Avenida (assim chamávamos à avenida Dr. Ramos Pereira) que nascia junto do “portinho”, pequeno porto piscatório, a norte, não muito longe do forte da Lagarteira em frente ao qual, por vezes, assentavam circos ambulantes (alguns tão pobres que causava dó ver a quasi miséria em que os seus artistas viviam). Uma ou duas centenas de metros para norte do forte entrava-se numa zona rochosa onde havia viveiros de marisco pertencentes a uma tal Flávia. O seu filho Fernando, da geração dos meus primos mais velhos, jogava bem futebol. Já faleceu. Uma filha chegou a ser segunda classificada num concurso de Miss Portugal nos anos 50.
Retomando a descrição: para sul, a Avenida ia até uma zona arborizada, mas mal arranjada. Perto desse extremo era instalada, só durante o estio, uma débil ponte de madeira para permitir a travessia do rio sem ser a vau. Vários anos mais tarde construíram uma de pedra e betão, também pedonal, que numa noite tempestuosa de inverno foi derrubada pela força do mar. Fizeram uma outra que ainda perdura.
A Avenida tinha uma razoável largura, bem como os passeios. Do lado da praia era limitada por um extenso e contínuo banco de pedra que permitia que as pessoas se sentassem com algum conforto, apesar de não haver qualquer apoio para lá do granito bem polido e ligeiramente convexo. De tantos em tantos metros havia, alternadamente, um candeeiro com três lâmpadas e uma floreira com cactos instalados numa espécie de podium granítico. Do outro lado estava casario. Casas térreas ou, no máximo, com dois andares, como em toda a vila, aliás, e ao longo dos anos foram aparecendo alguns cafés, esplanadas e até restaurantes. Refiro o Verdes Lírios e o Oceano.
O passeio ladeado pelo tal banco prolongava-se para além da Avenida e marginava a zona arborizada a que já me referi. Esta viria a chamar-se, depois de aprimorada, Parque Dr. Ramos Pereira.
A meio do passeio com o referido banco de pedra, e em frente à principal via de ligação da praça central da vila à marginal – a rua Cândido dos Reis – aquele transformava-se num semi-círculo a que chamávamos a “meia-laranja”. Registe-se que, durante muitos anos, a principal rua era a Estrada Nacional 13 que passava pelo centro da terra.
Quer de dia, quer de noite, era esse passeio marginal o favorito das pessoas para andarem de um lado para o outro e também para as criancinhas pedalarem nos seus triciclos ou pequenas bicicletas. As maiores circulavam, ou deviam circular, no empedrado da faixa para viaturas. Quando as pernas começavam a ficar cansadas lá estava o longo assento para repousar.
Entre a Estrada Nacional e a Avenida, e paralela a estas, estendia-se a linha férrea do Minho, via única e larga, havendo junto da rua Cândido dos Reis um apeadeiro e uma passagem de nível com guarda (o Sr. Santos, durante muitos anos). A estação do comboio era um pouco mais a norte, junto de uma serração. Mais para o interior da vila, já na zona da encosta da Serra d’Arga, havia uma fábrica de manteiga, queijo e, mais tarde, iogurtes. Eram as duas principais indústrias de Âncora.
Nesse espaço mais afastado da praia havia o monte do Calvário com a sua enorme escadaria, a capela com um púlpito exterior em pedra onde, por brincadeira, eu disse alguns sermões, a “gruta” fechada por um portão, mesas e bancos em granito, um cafezito, um frondoso arvoredo e um miradouro. Também acessível de carro, dele se podia ter uma estupenda vista do vale do Âncora e da vila. No alto deste monte havia uma enorme cruz branca, iluminada de noite e bem visível da zona baixa.
Havia também certos locais do rio Âncora mais afastados da foz que, nas tardes ventosas, por vezes constituíam pontos de peregrinação a pé de grupos de rapazes e raparigas para fazerem pic-nics ou tomarem banho em águas límpidas e com uma agradável temperatura. Recordo o Paço, o Pincho e a Torre.
Assim, numa relativamente pequena área, havia mar, rio, praia, dunas, rochedos, pinhal, monte e campos de cultivo. A vila era o centro vital de tudo isso.
Não admira que tanta gente passasse lá as férias.
Eram sobretudo pessoas de terras minhotas: Braga, Guimarães, Valença, Monção, Ponte de Lima, Arcos de Valdevez e outras localidades. Mas também do Porto, de Trás-os-Montes e até do sul, sobretudo de Lisboa. A partir de meados dos anos sessenta começaram a aparecer os emigrantes portugueses na Europa e a praia tornou-se menos mundana e mais popular.
 
E que fazia eu por lá?
Dos primeiros anos não guardo muitas memórias.
Lembro-me que ficávamos alojados na então Pensão Meira, propriedade da minha tia mais velha, a Bela e do seu marido Simão (o tio Mão).
Algumas fotos, que ainda conservo, avivaram-me a memória e posso aqui escrever que no início dos anos 50 nem os homens podiam andar na praia de tronco nu. Era obrigatório usar um corpete. E eu, apesar de muito pequeno, também o vestia pois o cabo-do-mar era implacável na sua missão de impedir tão grave atentado ao pudor.
Cerca de dez anos mais tarde, ainda o cabo-do-mar avisava as incautas e espantadas turistas estrangeiras de que era proibido usar biquini. E assim elas abalavam para outras paragens em que os guardiões dos bons costumes fossem menos zelosos. Para o Algarve, ainda a dar os primeiros passos como região de veraneio internacional, por exemplo.
Entretanto, brincava como todas as crianças daquela idade. Jogar a bola, o ringue, correr, saltar, andar no baloiço e simular natação (todos os esforços para que eu aprendesse a nadar foram infrutíferos: nem mesmo as lições ministradas pelos banheiros, uma espécie de nadadores-salvadores da época, deram qualquer resultado) eram algumas das minhas actividades. Além da minha irmã, os meus parceiros eram os três filhos do Antoninho Oliveira e da Mariinha: o Carlos, a Nelinha e o Tatuna. Amigos da família, viviam no Porto e também estavam alojados na Pensão. Havia um tal Manel Ângelo de que tenho uma vaga lembrança e nunca mais vi e o Renato Nuno que andou comigo na primária. Também a loira Julinha, a paixão de todos os rapazinhos da época. E outros, quer ancorenses, quer forasteiros, mas que não recordo, de todo.
Partilhávamos a barraca com a família Oliveira, com familiares e, por vezes, com o Fernando Caiado, antigo jogador do Benfica, sua mulher Lucrécia e o filho.           


publicado por António às 21:44
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Quarta-feira, 5 de Agosto de 2009
A Luanda que eu conheci (parte III e última)

E que aconteceu comigo durante este período?

Após o regresso de S. Tomé, o Rovuma continuou a navegar até que parou para novos trabalhos de manutenção.
Nessa altura, o João Távora, que estava a chefiar o Destacamento de Marinha do Cuando na povoação do Rivungo, junto da fronteira com a Zâmbia, lá longe no Cuando-Cubango, pediu o mês de férias a que tinha direito. Como eu não estava a navegar fui enviado no início de Fevereiro para o substituir. Acabei por fazer a desactivação daquela pequena unidade e só regressei a Luanda em princípios de Abril. Mesmo nessa zona recebia o jornal “Expresso” todas as semanas e mantive-me a par dos principais acontecimentos político-militares.
 
Pouco depois de regressar, e numa festa cuja causa já não recordo, travei conhecimento com uma funcionária do Comando Naval. A Zinha era mais velha do que eu sete ou oito anos, cabelos loiros e curtos, óculos graduados, franzina mas muito activa, com um magnífico BMW, separada do marido, com dois filhos no Continente e vivendo só num apartamento de duas assoalhadas duma torre situada perto do aeroporto. Não tardou muito que estivesse a viver com ela. Só lá não ia dormir quando os combates entre as facções angolanas eram mais encarniçados e a tropa portuguesa ficava de prevenção rigorosa (cada militar na sua unidade).
Vem a propósito referir que, uma noite, houve um tiroteio mesmo junto da Base Naval. Acordei com os tiros e fui espreitar, rastejando. E lá estavam os ex-guerrilheiros a lutar uns contra os outros. Acabada a batalha, com receio de ser atingido por balas perdidas de alguma nova refrega, adormeci no chão da camarata que ficava no primeiro andar. Na manhã seguinte apareceu o cadáver de um jovem dos seus dezoito anos mesmo junto do portão de entrada nas instalações navais. Era da FNLA.
Feito este aparte, direi que a Zinha tinha uma jovem empregada negra que ia algumas vezes por semana fazer trabalhos domésticos e levava uma filhinha ainda de meses. Uma menina linda! Notamos que ela tossia bastante e, ao fim de alguns dias, a Joana faltou. Fomos ao musseque saber o se passava (a Zinha conhecia bem a cidade) e verificamos que a menina estava às portas da morte. No dia seguinte faleceu com tosse convulsa ou coqueluche.
 
Entretanto, a debandada dos colonos continuava e cada vez mais intensa. Quando escrevo colonos estou a ser redutor, pois muitos negros e mestiços também abandonaram a cidade. Mais…todo o território.
A Universidade de Luanda viu-se sem muitos professores e, para poder leccionar o 2º semestre, recorreu a militares portadores de licenciaturas que por lá estavam. E assim fui dar aulas teórico-práticas de Física Geral. Como previdente que sou, tinha levado bastantes livros para Angola pelo que não me faltava bibliografia.
Os alunos eram quasi todos brancos. Contudo, recordo-me de uma bela e elegantíssima negra, muito bem vestida que, como fazia habitualmente com os alunos para os manter atentos, chamava ao quadro para resolver novos problemas com a minha ajuda (confesso que gostava de a ver de pé – um espectáculo) mas sabedoria não era o seu forte. Todavia, também me lembro de dois rapazes pretos, de aspecto humilde mas sempre de fato e gravata, embora a roupa estivesse em mau estado e amarfanhada, que eram muito aplicados mas muito lentos na resolução dos problemas. Não foi sem surpresa que, na prova final, tiveram a melhor nota. Penso que o facto de haver mais tempo para resolver os exercícios propostos e a motivação da independência do seu país a curto prazo, em contra-ponto com a desconcentração que grassava entre os alunos brancos, pode justificar o resultado. No decorrer do semestre, uma universitária branca (e eu refiro sempre a cor da pele pois isso é importante para se perceber melhor o que era a Luanda daquela época) muito conhecida, embora não por mim, estava no jardim de sua casa sentada, a estudar, quando foi atingida mortalmente por uma bala perdida. Foi uma ocorrência triste que ainda fez aumentar mais o pânico na população de raça caucasiana. Muitos alunos deixaram África antes de se ter concluído o semestre.
 
Entre o meu regresso do Rivungo e o início da minha relação com a loira, o Rovuma foi mandado regressar ao Continente. Não sei porquê, mas talvez porque ainda estivesse um pouco “apanhado” pelo tempo incrível que passei na savana, troquei com o Zulmiro que estava no NRP Orion e era casado. Também lhe comprei o Fiat 500. Como este navio estava em doca seca (da qual nunca mais saiu até ao meu regresso a Portugal), eu continuava sem navegar e dedicado ao ensino e a uma vida de casado. Uma vez, a Zinha resolveu cozinhar muamba, um prato à base de galinha mas com uma série de condimentos africanos que o poderiam tornar muito picante e lhe davam um paladar desconhecido para mim. Gostei!
 
Por essa época vim passar duas semanas de férias a Portugal tendo prescindido do mês a que tinha direito por razões que não recordo, mas seguramente que o facto de em poucos meses estar definitivamente de regresso pesou na minha decisão. Estive na casa dos meus progenitores, naturalmente, e achei que o meu pai estava com o cabelo muito mais embranquecido e mais envelhecido. O 25 de Abril não tinha sido nada bom para ele. Também fui ver um tio paterno, o Gilberto, que estava em casa, a morrer. Globalmente, e apesar da satisfação de rever a minha família e alguns amigos, não foram duas semanas muito agradáveis, não sei bem porquê.
 
Regressado a Luanda, constatei que o meu Fiat 500, cujas chaves entregara ao Vilela Bouça, estava a fazer barulhos estranhos no motor. E um dia pifou. Soube depois que toda a gente andou a fazer peões com o meu carro durante a minha ausência. Como tinha sido muito barato, preferi não arranjar zangas numa fase complicada como aquela. Comprei um Fiat 850 que saiu um fiasco e por lá o deixei. Também havia sido ao preço da chuva…
A minha companheira, entretanto, vendeu o BMW e comprou um pequeno Mitsubichi.
Com medo de ficar só no seu apartamento afastado da baixa citadina e sobretudo pelas zonas perigosas que tinha de atravessar ao ir para o trabalho ou para o centro, também largou o T1 e alugou um outro apartamento na baixa.
Entretanto, a cidade que eu conhecera tornava-se cada vez mais descaracterizada.
Como estava mais triste e feia…
Restava a vista sempre linda da baía.
Nas montras só se via um tipo de artigo para vender: ventoínhas. E nas ruas cada vez menos pessoas e menos tráfego automóvel. Era uma cidade moribunda, quasi fantasma.
A Zinha continuava a pensar em continuar por lá. Eu, prevendo que haveria muito desemprego em Portugal, fui à Refinaria da Petrangol, no Cacuaco, oferecer os meus préstimos. A minha candidatura foi muito bem vista, mas só se poderia concretizar depois de me desvincular da Marinha.
Estávamos no fim de Setembro e a minha viagem de regresso foi marcada para o dia 1 de Outubro de 1975.
Pouco antes a Zinha disse-me que estava grávida. Decidimos que não era nada oportuno ter um filho naquela altura e assim se cumpriu.
 
Regressei ao continente com a ideia de voltar como civil.
Gozei um mês de férias, deixei a Armada e contactei a Petrangol. Ao fim de pouco tempo disseram-me para fazer uns exames médicos e não sei mais o quê para poder ser admitido a ir trabalhar na refinaria.
Acontece que, por esses dias, li no jornal que Luanda era o objectivo a conquistar por forças armadas: a sul por uma que viera da Namíbia (ou da África do Sul, não sei ao certo) e cuja composição era mal definida e a norte pelas tropas da FNLA que estacaram a poucos quilómetros do Cacuaco antes de desferirem o assalto final.
Cautelosamente, resolvi adiar sine die os exames médicos e acabei por esquecer o trabalho em Luanda.
Entretanto, o MPLA, ajudado por tropas cubanas enviadas por Fidel Castro, rechaçou os ataques que estavam eminentes e ficou definitivamente de posse da capital.
A Zinha também voltou a Portugal e foi viver com a avó e os filhos numa localidade perto de Oliveira de Azeméis. A relação manteve-se durante mais cerca de dois anos. Acabou e nunca mais a vi.
 
Antes disto, no dia 10 de Novembro de 1975, o Almirante Leonel Cardoso, que em Agosto passara de Comandante Naval a Alto-Comissário, deixou Angola sem entregar o poder a ninguém – a independência foi “depositada” nas mãos do Povo angolano, contando a partir do dia 11.
 
Nunca mais voltei a Luanda.


publicado por António às 22:05
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