Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Reconversão do texto “Diálogos de gente (XVI) (O sovina)” de 22 de Agosto de 2006
Isaac Woźniak era um judeu polaco, comerciante proprietário de três lojas de pronto-a-vestir e pertencente à classe média alta.
Filho único do falecido Jacob Woźniak que se refugiou em Portugal logo no início da II Grande Guerra com a mulher Sara e o menino, deu continuidade aos negócios que o progenitor por cá criara. O velho Woźniak fora o fundador do primeiro dos estabelecimentos comerciais, na altura uma casa de fazendas.
Isaac era então pouco mais que um bebé e agora tem quasi setenta anos. Casou com uma judia austríaca, Raquel, cujos pais também eram refugiados. Mas a mulher nasceu já em terras lusitanas.
Tem três filhos rapazes e cada um gere uma das lojas. O homem costuma estar mais tempo nesta, onde começa a acção, mas vai às outras pelo menos uma vez por semana.
- Bom dia, Isaac!
Ao ouvir a voz reconheceu-a imediatamente.
Levantou a cabeça do livro em que escrevia e olhou para o seu amigo Jaime Furtado.
- Olá, Jaiminho! – ripostou.
O diminutivo vinha dos tempos do liceu onde haviam sido colegas de turma e resultava de o recém-chegado ser um tipo baixo e franzino, em contraponto com o homenzarrão que era o comerciante.
E continuou:
- Já não aparecias por cá faz uns tempos! Estás sempre na mesma! Se engordasses com a idade, como seria normal, davas-me mais dinheiro a ganhar comprando nova roupa para substituir a que fosse ficando apertada.
E sorriu.
- Tu tens é inveja de não ter a minha elegância! – respondeu o Furtado, sorrindo também.
Deram um aperto de mão.
- Elegância? Diz antes magreza! Só há uma coisa que te invejo: poupas muito dinheiro em comida e em roupa – falou o judeu.
- Ó homem! Tu só pensas em poupar nos gastos e em ganhar mais. Qualquer dia bates a bota e a tua fortuna fica cá – criticou o Jaime.
- Fortuna? Tenho alguma coisa, lá isso é verdade, mas é graças ao meu feitio economizador – explicou o Isaac.
- Economizador? Tu és um somítico. Um sovina. Um avarento – disse, rindo, o magricela.
E prosseguiu o ataque:
- Ainda me lembro que me dizias muitas vezes: “Este ano tive não sei quantos contos de prejuízo”. Eu ficava sempre intrigado porque via os teus negócios a prosperarem, tu a fazeres investimentos, a construíres uma bela casa...até descobrir que afinal não tinhas prejuízo mas tão somente consideravas que se o lucro de um ano era inferior em x ao do ano anterior tinhas tido um prejuízo de x. És mesmo judeu!
Riram-se os dois.
- Como está a tua família de pobrezinhos? – quis saber o visitante.
- Tudo bem! Só a minha Raquel é que continua com os problemas nos ossos. O meu filho Moisés está ali ao fundo e os outros estão nas lojas que gerem, como sabes. E a tua de ricos?
- Está tudo dentro da normalidade, obrigado – respondeu o Jaime.
- E então o que te traz por cá?
- Quero comprar duas ou três camisas de popelina, brancas e azuis – disse o cliente e amigo.
- Que número gastas?
- Trinta e seis.
- Pois! Número de rapazinho – gozou o Isaac.
- Como é um número pequeno gasta menos pano e portanto tem de ser mais barata. Venho cá esperando um grande desconto – provocou o Jaime.
- Já sabes que para ti há sempre um preço especial. Eu venho já!
O comerciante afastou-se um pouco e deu instruções a um empregado.
- Vamos ver se me faz quinze por cento de desconto! – cogitou o Furtado.
Passado pouco tempo o Jaiminho já tinha escolhido quatro camisas: duas brancas, uma azul clara e outra bege. Todas lisas.
- Então quanto é que tenho de pagar? – perguntou o cliente.
- Ao preço normal são trezentos euros, mas para ti são...duzentos e setenta.
- Só dez por cento de desconto? Tem de ser vinte! – refilou o Jaime.
- Vinte? Tu queres que eu vá à falência? – chorou-se o judeu.
- Qual falência qual quê? Duzentos e quarenta!
- Só me aparecem clientes destes! Vinte por cento é a minha margem – mais choro do Isaac.
- Não me faças rir! Tu tens pelo menos trinta de margem. Mas acho que tens quarenta.
- Não! A sério que não posso fazer vinte. Faço-te quinze e não se fala mais nisto. Olha que é artigo do melhor.
- Quinze? Dá...duzentos e cinquenta e cinco, ou seja, cerca de treze contos cada uma. Pronto, levo! Mas vens comigo ali ao café para pôr a conversa em dia e és tu quem paga, Isaac. Mas não te preocupes que eu peço um café curto.
E riram-se os dois, de novo.
Passadas umas duas semanas, estava o Jaime Furtado com a mulher Margarida a almoçar uma refeição ligeira, como de costume, mas com o televisor ligado para verem e ouvirem o Telejornal da uma; o nome não era este mas era assim que eles lhe chamavam.
Uma das primeiras notícias referiu-se a um incêndio que havia ocorrido durante a noite numa loja de pronto-a-vestir do centro da cidade.
- Mas é a loja do Isaac! – exclamou o amigo.
E pararam de comer para escutar e observar atentamente as informações.
- Estás a ver, Jaime? Ardeu tudo! – disse a mulher.
- Estou, estou! Daqui a pouco vou lá para ver se falo com ele.
- E chegaram a arder coisas nos prédios ao lado. Que desgraça! – comentou a Margarida.
- Deixa ouvir! – ralhou o homem, para logo de seguida continuar – Ah! Pois! Tinha aquilo no seguro. Resta saber se, sovina como é, não tinha um contrato feito por um valor abaixo do real para poupar dinheiro.
Cerca de uma hora depois estava junto dos escombros negros e ainda fumegantes do prédio onde estivera cerca de quinze dias antes.
Foi ouvindo isto de um e aquilo de outro mas ia dizendo para com os seus botões:
- Cada pessoa tem a sua versão. Logo que possa vou falar com o Isaac. Ele agora está com o filho e o chefe dos bombeiros e não vou interromper.
Passou mais de meia hora ali perto e já devia ter a roupa que tinha vestida com o mesmo cheiro intenso a queimado que pairava no ar.
Finalmente viu o velho amigo dirigir-se para o carro que estava estacionado perto do local onde aguardava.
- Então, Isaac! Que grande chatice! Mas do mal, o menos: não ficou ninguém ferido. E tu como estás? – perguntou o Jaiminho.
- Como calculas não estou muito bem disposto…
- E tinhas isto bem seguro? – prosseguiu o homem magro curioso de saber pormenores.
- A parte material estava abaixo do valor real, mas eu queria assim mesmo. O que poupei ao longo destes anos todos a pagar menos compensa-me do que receber abaixo desse valor.
- Pois…
- Mas a indemnização por inactividade estava bem negociada. Ao fim e ao cabo eu sou judeu, não sou? – e fez um ligeiro sorriso para o amigo antes de o abraçar.
- És mesmo judeu, Isaac! Mas gosto de ti.