Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Escreveu Conceição Meireles, professora de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade do Porto:
“Após a Implantação da República em 5 de Outubro de 1910, foram desenvolvidos trabalhos legislativos e, logo em 12 de Outubro, saiu um decreto que estipulou os feriados nacionais.
Alguns desapareceram, nomeadamente os ditos feriados religiosos, uma vez que o objectivo da República era justamente laicizar a sociedade e subtraí-la à influência da igreja.
Os feriados que ficaram consignados por esse decreto de 12 de Outubro de 1910 foram:
o 1 de Janeiro, que era o dia da Fraternidade Universal;
o 31 de Janeiro, que evocava a revolução – aliás, falhada – do Porto e que portanto era consagrado aos mártires da República;
o 5 de Outubro, vocacionado para louvar os heróis da República;
o 1 de Dezembro, que era o Dia da Autonomia e o Dia da Bandeira;
e o 25 de Dezembro, que passou a ser considerado o Dia da Família, tentando também laicizar essa festa religiosa que era o Natal”.
O decreto de 12 de Outubro dava aos municípios a possibilidade de escolherem um dia do ano que representasse as suas festas tradicionais e concelhias.
Lisboa escolheu para feriado municipal o 10 de Junho, em honra de Camões, uma vez que a data é apontada como sendo a da morte (em 1580) do poeta que escreveu Os Lusíadas”.
O dia da morte de Camões só em 1925, ainda no tempo da 1ª República, foi comemorado como feriado nacional.
O Estado Novo manteve essa celebração, tendo até utilizado o dia para a inauguração do Estádio Nacional, em 1944. Durante a cerimónia, Salazar proferiu um discurso em que rebaptizou o feriado como Dia da Raça, nome que, aliás, já vinha sendo usado, ao que parece, embora não oficialmente.
Não sei exactamente, mesmo depois de ter feito várias pesquisas, qual a evolução do nome oficial do 10 de Junho ao longo deste período:
Dia de Camões?
Dia de Portugal?
Dia de Camões e de Portugal?
Dia da Raça?
À data do golpe militar de 25 de Abril de 1974 parece que o 10 de Junho era conhecido como o Dia de Camões, de Portugal e da Raça.
Mas a terceira República não se revia nesta designação e em 1978 já é comemorado como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
E entre 1974 e 1977?
Fica a minha interrogação.
Após este longo intróito, passemos então ao assunto que me levou a escrever este texto:
Em Fevereiro de 1973, e após ter concluído os meus estudos, ingressei voluntariamente, mas após prestar provas várias, incluindo documentais, no Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (no meu caso, o 22º CFORN) destinado à formação de oficiais milicianos da Armada.
Éramos quarenta no curso de Marinha, trinta e cinco no curso de Técnicos Especialistas, que englobava licenciados em Direito, em Geografia, em Química e muitas outras áreas e vinte e cinco no curso de Oficiais Fuzileiros Navais. Cem no total.
Fomos todos instalados, com várias mordomias como era apanágio da Marinha de Guerra, na Escola Naval do Alfeite onde fizemos uma instrução durante cerca de seis meses sendo que um deles foi passado no Grupo nº 1 de Escolas da Armada em Vila Franca de Xira.
O curso era razoavelmente exigente do ponto de vista de estudo teórico, mas pouco no que respeitava à preparação física.
Em Agosto, penso que só os cadetes do curso de Marinha, embarcamos na fragata Roberto Ivens para cerca de duas semanas de uma viagem de instrução: Ponta Delgada em S. Miguel (Açores), Mindelo em S. Vicente (Cabo Verde) e Las Palmas na Gran Canaria (Ilhas Canárias) foram os locais de atracação.
Depois seguiram-se as férias e a colocação, já como aspirantes a oficial, em várias unidades navais ou de terra, no Continente ou no Ultramar, como eram chamadas as colónias.
Mas o que eu queria verdadeiramente deixar aqui escrito foi que, no dia 10 de Junho de 1973 (reparem bem no ano – 1973), a companhia de cadetes da Escola Naval foi destacada para desfilar no Terreiro do Paço, na capital, numa cerimónia comemorativa do dia que foi presidida pelo então Presidente da República, Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz e pelo Presidente do Conselho de Ministros (actualmente chamado de Primeiro-ministro), Professor Doutor Marcello José das Neves Alves Caetano.
As muitas companhias que iriam participar no desfile, dos três ramos das forças Armadas, estiveram no centro da praça esperando a sua vez de prestar o respectivo contributo activo à cerimónia, enquanto oficiais e soldados íam sendo condecorados na tribuna de honra. Muitos já estavam enterrados e a homenagem era póstuma sendo as medalhas entregues a familiares.
Deprimente!
Antes, tinham sido proferidos os discursos da praxe com a exaltação do papel das Forças Armadas na defesa da Pátria multiracial e pluricontinental
Até que ao fim de uma eternidade lá começou o desfile.
A minha companhia foi a primeira e lembro-me perfeitamente de, ao fazer a saudação em marcha à tribuna de honra que tinha sido montada mesmo junto ao Cais das Colunas e virada para norte, vislumbrar com nitidez aquelas duas altas figuras do Estado.
Marchávamos no sentido jusante – montante, tendo em consideração o rio Tejo.
Depois foi meter pela rua da Prata, virar à esquerda não sei onde e regressar pela rua do Ouro.
Havia muitos populares que nos saudavam e, tanto quanto me apercebi, eram as companhias da Marinha de Guerra as mais aplaudidas.
- Estes é que são bons! – gritava, entusiasmada, uma quarentona.
- Olha como é linda esta farda! – dizia outra mulher em voz alta.
Os mirones eram sobretudo pessoas que viviam em zonas menos abastadas da baixa e da beira-rio, assim me pareceu.
Terminada a volta, voltamos a formar no centro da praça mas, desta vez por pouco tempo. A ordem de destroçar não demorou.
E foi assim que fui protagonista do derradeiro Dia da Raça!